Rui Werneck de Capistrano

Quem trouxe a palavra de hoje foi Milan Kundera. Logo de cara, ele diz que não achou tradução ou similar em outras línguas. É tcheca de raiz e frutos. Mas acho que qualquer um já sentiu em algum momento o efeito de uma litost. A menos que você seja um daqueles privilegiados que teve criação e educação de primeiríssima qualidade.

Kundera define litost como “um estado atormentador nascido do espetáculo da nossa própria miséria repentinamente descoberta”. Sentiu o drama? Essa miséria repentinamente descoberta pode ser revelada de diversas maneiras. Mas o efeito é sempre o de nos fazer sentir a alma nos abandonando, um oco no estômago e na cabeça. Ficamos sem ação, mas nascem um ódio reprimido e uma vontade surda de vingança.Vamos a um exemplo meu.

No colégio onde você estuda de manhã, as meninas estudam à tarde. Como se vê, é um exemplo antigo. Um dia você descobre um bilhete embaixo da sua carteira. É de uma menina que diz querer se corresponder com você. Você estranha, mas responde, sabendo que à tarde ela vai ler. Nasce uma espécie de romance platônico que é alimentado a cada dia por inocentes bilhetes. Você despeja seu romantismo adolescente em poemas, frases roubadas de outros autores, confissões. E ela corresponde. Um segredo que ferve a alma. E dá sentido a tudo.

Certo dia, os seus colegas descobrem seu bilhete e, tirando-o lugar exibem pra sala inteira. Leem em voz alta suas declarações amorosas e tudo mais. É nesse momento que sua alma o abandona — aparece a litost. Suas misérias literárias expostas pra delírio dos amigos.

Tem outros exemplos meus rápidos: no vestiário do colégio, alguém pega sua meia furada, escondida dentro do sapato, e mostra pra todo mundo. O professor que insiste em mostrar que você não sabe resolver nem uma equação de primeiro grau no quadro negro. E a turma toda ri. Kundera conclui que litost é a imagem da nossa idade da inexperiência. Mas que marca profundamente, marca, né? Como se diria litost em português?

Rui Werneck de Capistrano

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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