A cidadezinha de Hogarty

Amanhecia. Ou, anoitecia. Tanto faz. Importante, ou não, é que naquela cidadezinha de Hogarty todos se chamavam Hogarty. O açougueiro era o Sr. Hogarty, a professora do primeiro grau se chamava D. Hogarty, o delegado de polícia era o Sr. Hogarty, a mulher do pedreiro Sr. Hogarty era D. Hogarty. E assim por diante. Não preciso nem dizer que até o filho recém-nascido do vendedor de vassouras, Sr. Hogarty, e da costureira Sra. Hogarty, era o bebê Hogarty.

Mas, agora, amanhecia. Ou, anoitecia. Tanto faz. Na cidadezinha de Hogarty ninguém se preocupava com isso. Dias, horas, minutos, meses e anos eram todos Hogarty. Até os dois séculos que se completavam no calendário tinham o nome de Hogarty. E, antes desses dois séculos, tivemos os séculos a. H. – antes de Hogarty – assim nomeados pelos historiadores.

Você pode estar se perguntando se nessa cidadezinha chamada Hogarty, com todas as pessoas se chamando Hogarty, não reinaria certo tédio – na verdade, um profundo e avassalador tédio. Ainda mais que eles nem se importavam com a passagem do tempo, lembrando que podia anoitecer ou amanhecer sem causar transtornos ou arrepios. Chover ou fazer sol não fazia diferença, também. Mas, surpreendentemente, não era isso que acontecia. Quer dizer, não havia tédio – profundo e avassalador – em nenhum recanto da cidadezinha. Todos viviam alegres, satisfeitos e de bem com a vida. Como os habitantes conseguiram isso é motivo de estudos em algumas universidades famosas do mundo. Recolhidos em gabinetes obscuros, quase cochilando sobre empoeirados livros, entediados sociólogos tentam desvendar o segredo da cidadezinha de Hogarty. Por exemplo: um entediado, porém brilhante, estudioso de Oxford se debruça sobre os empoeirados livros, mas sua mente sai voando pela janela atrás de — bolas de futebol correndo pelos campos, riffs de guitarra em show de rock num amplo espaço aberto, escadas-rolantes num iluminado shopping center, automóveis reluzentes acelerando na estrada rumo às praias, etc., etc.

Oras! Desse jeito nunca irá — esse brilhante estudioso — descobrir o segredo da cidadezinha de Hogarty. Não quero dizer, com isso, que tenho a chave para abrir essa pesada — e ambicionada — porta. Só acho que se deveria procurar em outro lugar — num… Ah, deixa pra lá. Você não vai procurar mesmo, ó, meu dessemelhante, entediado irmão.

*Rui Werneck de Capistrano escreve besteiras, asneiras e aceitaencomendas de textos, especificamente para bulas de remédio

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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