Foto de Newton Maringas Maciel

O currículo do Solda se faz em poucas linhas: nasceu em Itararé (aquela assumida pelo Barão de) em 1952; desloca-se para Curitiba em 1965. E aqui trabalha até se tornar um dos maiores cartunistas brasileiros de todos os tempos. Um artista em que a palavra “trabalho” comparece em todas as linhas. Não há como não ver na segunda data um indicativo histórico: estava em gestação o famoso 1968. Curitiba, então uma cidade com 500 mil habitantes, oitava entre as capitais brasileiras, centralizava um Estado jovem, ervateiro-madeireiro-cafeeiro, mas já ensaiando um processo industrial. E embora com menos truculência que as cidades maiores, permeava para aqui a agitação, a esperança e a ingenuidade que envolviam o planeta. Em três tempos – ou três palavras – dá prá contar isso: sputnik, Beatles e mini-saia.

O satélite russo em 1957 exibiu acintosamente a supremacia tecnológica socialista ao mundo – e só mais de dez anos depois, enviando homens à Lua, num espetáculo com mais de mídia que de tecnologia, os americanos conseguiram empatar.

Essa será talvez a característica fundamental de nosso tempo, que o Solda denunciará em seus cartuns: o ser humano assombrado por sua própria criação. Texturas bem marcadas de nuvens de letras, notas musicais, palavras, siglas, números: os personagens saltam do papel perplexos, desconfiados, inseguros… Eles nos perguntam: somos mesmo todos culpados disso? Sim, no mínimo pela omissão: convivemos boquiabertos com um tecnologismo inútil, em nossa arrogância de quem está destruindo um planeta inteiro e nem liga pra isso.

Beatles, claro. Sem eles nosso tempo ficaria ainda mais insípido. A segunda metade dos anos sessenta é marcada pela sucessão de discos, cada qual mais importante que o anterior. Um dos cartuns do Solda contém a legenda: “desenhar é fácil. É só correr o risco.” Foi o isso, precisamente, que o pessoal de Liverpool nos ensinou: a correr o risco, a dar o salto no escuro, a fazer-prá-ver-o-que-acontece.

E a mini-saia, que é o culto da liberdade e da beleza. Dizia o gaulês Malraux que “a liberdade é prá quem a conquista” – e dá prá ser mais poético do que conquistando a liberdade pela beleza? E taí novamente o Solda – não de mini-saia, é claro – mas com seu desenho, seu traço único e inconfundível. Nenhum censor, por mais tosco que seja, ousaria cortar um recado do Solda ainda que, no vocabulário da época, fosse dos mais subversivos.
Evidentemente, não foi um percurso solitário: era o caminho que nós, “os que sabíamos das coisas” (ou pelo menos assim achávamos…) fazíamos ou queríamos fazer. E o nosso veículo de idéias, era o Pasquim – principalmente. Hoje podemos considera-lo num novo papel, o de indicador: se a tiragem chegou a 200 mil exemplares, é porque havia no país 200 mil pessoas “que sabiam das coisas”: pouco, muito pouco… E nem a coisa é tão simples, mas é fortemente emblemática. Principalmente no sentido da renovação e da modernidade – de que o cartum, o desenho de humor, a charge, a caricatura – são grandes e poderosas ferramentas.

Depois de uma apresentação da “Revista do Henfil” em Curitiba, Ruth Escobar, em fala ao público, disse: “… a música e o teatro estão muito visados pela censura. No Brasil quem ainda dá recado é só o humor, o cartum…”

A mensagem cai numa província que, conquanto provinciana, não era alienada. Como provavelmente a maioria dos Estados brasileiros, o Paraná tem uma razoável produção de arte gráfica – aí incluído o cartum – que remonta ao século XIX. Mesmo sem uma individualidade específica, essa produção, que acontece à sombra dos Estados centrais, marca a paisagem cultural regional.

Mas quando o Solda chega à cidade há um vácuo na área: o veterano Alceu Chichorro vive seus últimos anos, e ainda não surgiu a geração do “ciclo alternativo” da década de setenta. Assim o cartunista profissional tem diante de si a árdua tarefa de entrar no mercado pela excelência de seu trabalho, procurando uma visibilidade nem sempre muito à mão. Em tempos ditatoriais, é mais fácil um ricaço sacar de seu talão de cheques, que um editor disponibilizar seu espaço para um material tão inflamável quanto o cartum. E mais ainda, em tempos ditatoriais explícitos como os que então corriam – veja-se a recorrente presença dos lápis e canetas de desenho como armas e ameaças nos cartuns do Solda.

Já me ocorreu, folheando catálogos de Salões de Humor, que o cartum é o mais poderoso indicador das preocupações humanas. O futuro exigirá dos historiadores a leitura de cartuns. Percorrer a recente antologia do Solda apresentada pelo Jaguar – não por acaso, uma das figuras básicas do Pasquim – é mais que o exercício prazeroso da leitura dos cartuns. É rever toda a história do Brasil vivida pela nossa geração. Da ditadura à abertura; do futebol às diretas já; dos políticos corruptos às manipulações da mídia; chegando sempre às nossas perplexidades e ansiedades cotidianas. Muitos ainda fazem rir, todos fazem pensar – e portanto, sobreviveram à famosa amnésia programada brasileira.

O que me faz pensar em fechar esta apreciação com um cartum literário do Mario Quintana – lido pela primeira vez no Pasquim – que cai redondo na produção do Solda: “todos esses que aí estão, impedindo meu caminho: eles passarão, eu passarinho…”

Revista Oroboro|Key Imaguire Jr.
(arquiteto, um dos fundadores da Gibiteca de Curitiba)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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