1987

Houve um tempo em que o hoje bizarro Mickey Rourke foi considerado um dos atores mais talentosos de sua geração. Neste sentido, Coração Satânico não é apenas o filme que traz o ator em sua melhor interpretação, mas que também marcou o início de sua derrocada, sua literal queda para o inferno.

Dirigido com precisão por Alan Parker, o filme se passa em 1955 e conta a história de Harry Angel (Rourke), um detetive particular de segunda categoria que é contratado por certo Louis Cypher (Robert de Niro) para encontrar Johnny Favorite, um cantor desaparecido há mais de 10 anos que supostamente lhe deve algo muito valioso. A busca por Favorite leva Harry Angel da Nova York aos pântanos de Nova Órleans, numa jornada que afetará não apenas a vida dos investigados, mas a sua própria.

Concebido de forma a replicar os filmes de detetive dos anos 40, os conhecidos fimes noir, Coração Satânico mescla de maneira surpreendente diversos gêneros, sem que com isso perca a sua coerência e a sua identidade. Contribui muito para isso a trabalho acachapante do fotógrafo Michael Seresin, que investe firmemente na luz e na sombra nas cenas internas, banha com uma espectral luz azul os ambientes externos e literalmente sufoca a todos com a fotografia ensolarada (e abafada) quando a narrativa se desloca para Nova Órleans.

A direção de arte é também impecável, com cenários que investem em constantes tons vermelhos – que podem ser vistos nas paredes, nas portas, nas cortinas, no gravador, nas toalhas e, claro, no sangue que sempre cruza o caminho de Harry Angel.

O clima soturno exigido pelo filme é complementado pela trilha sonora de Trevor Jones que, junto ao saxofonista Coutney Pine, compõe uma trilha elegante e intensa quando necessário, utilizando-se, de maneira sutil, dos primeiros acordes da canção ‘Girl of my dreams’, cuja versão original será fundamental para a conclusão da trama. O design de som também é peça importante para a manutenção deste clima, contando com efeitos como o já conhecido uso da ‘batida de coração’, utilizado por Parker desde O Expresso da Meia-Noite, o ritmo do sapateado de alguns garotos, latidos, hinos até o som do mecanismo de ventiladores que giram sem funcionar e portas de elevadores que insistem em continuar sempre descendo durante todo o filme.

Criando composições visuais sempre perfeitas, Alan Parker estabelece desde o primeiro momento a relação entre os personagens de Robert de Niro e Mickey Rourke. Apresentado pela primeira vez sentado no que podemo considerar como um trono, com grandes unhas, bengala, cabelo preso e fala mansa, Louis Cypher é o perfeito retrato da dissimulação. Alguém que deseja ardentemente encontrar um antigo cliente, mas que jamais conta o porquê. Um homem que se interessa pelos aspectos nefastos da investigação mas abomina que se fale palavrão numa igreja.

Aparecendo apenas mais três vezes até o fim da história, Cypher vai, a cada encontro, revelando mais e mais de sua personalidade e de suas reais intenções. O que era apenas um ar pretensamente blasé transforma-se aos poucos em arrogância, em desinteresse pela vida humana e, por fim, em maldade pura. Com gestos estudados – e unhas que vão crescendo ao longo do filme – De Niro transforma Louis Cypher em uma criatura amedrontadora sem que, como ele mesmo diz, precise aparecer “com chifres e cascos”. A cena em que ele come um ovo, repetida à exaustão por Parker até chegar ao resultado desejado, mostra como uma grande atuação e uma grande direção conseguem injetar emoção mesmo num ato visualmente simples como esse. Nessa hora, o contexto é fundamental.

Do outro lado do espectro está Mickey Rourke, recém-saído de 9 ½ Semanas de Amor e do subestimado O Ano do Dragão. Numa composição estudada e detalhista, Rourke inicialmente apresenta seu Harry Angel como uma figura descolada, sempre vestido de forma desleixada e com uma gravata de cor berrante, que se utiliza de seu charme para conseguir as informações necessárias.

A medida, porém, que mortes passam a ocorrer e acometido de terríveis alucinações, Angel abandona seu ar de confiança e mostra-se um homem simplesmente aterrorizado com a verdade que aos poucos vai se mostrando para ele.  Se, quando depara com o primeiro assassinato, Angel revela sangue-frio a ponto de acender um fósforo no pé do morto, é visível sua degradação psicológica e emocional quando vai interrogar o pai da personagem vivida por Charlotte Rampling, destruindo pedaços imensos de gelo, como se isso pudesse aplacar seu desespero. E Rourke demonstra todos estes sentimentos de forma pungente. Seu olhar, que vai cada vez mais se perdendo enquanto a história avança, é a prova de que estamos a frente de um grande ator.

O elenco conta ainda com a presença da bela Lisa Bonet, que na época trabalhava no sitcom de Bill Cosby e surpreendeu a todos por sua entrega completa a diversas cenas de nudez e sexo. No papel de Epiphany Proudfoot, filha de Johnny Favorite, e sacerdote de um culto vodu, Bonet surpreende pela sensualidade mesclada a certa resignação. Escrito pelo próprio Alan Parker, baseado no livro homônimo de William Hjortsberg, o roteiro sabiamente não entrega suas fichas de imediato, revelando aos poucos seus segredos, deixando o espectador tão atônito quanto Angel em suas descobertas.

Inserindo aqui e ali detalhes que apenas enriquecem a narrativa (o problema com galinhas, as balas dentro da Bíblia, a mulher gorda no mar, o elevador que desce durante todo o filme), Parker ainda encontra tempo para a crítica social sempre constante em seus filmes, sem que isso pareça fora do contexto ou panfletário, como o pastor que pede que seus fiéis ‘o ajudem a comprar um rolls-royce’ ou o ônibus com espaços definidos para negros e brancos. Isso sem contar com diálogos inspirados, como quando Angel comenta com Epiphany “que sua mãe havia lhe deixado um belo nome”, e ela responde: “e não mais do que isso”.

Cineasta com grande apuro visual, Parker se dá ao luxo de citar uma de suas cenas mais famosas de Pink Floyd: The Wall (o homem na praia) e de referenciar diretamente Chinatown, com Rourke usando um protetor para o nariz, assim como o Jake Gittes de Nicholson usava um curativo por boa parte do filme. Além disso, Parker consegue criar sequencias impactantes, como a cena de sexo entre Angel e Epiphany, que começa de forma leve e até irônica para terminar como um tsunami de sangue e violência e aquela em que Angel corre desesperado, sozinho, por uma Nova Órleans sob chuva intensa.

Carregado de simbolismo religioso, Coração Satânico é uma experiência avassaladora, um estudo intenso sobre o que se esconde no coração de cada um. Mais do que nunca, é curioso nos afastarmos do filme e perceber que, de certo modo, a trajetória de Harry Angel terminou por se refletir na vida de Rourke – embora esse tenha ido ao inferno e voltado. Se há algum pecado no filme – e pecado é algo a se esperar nesta obra – é o efeito rasteiro dos olhos brilhantes na conclusão do filme, como se Parker achasse que o público precisasse desse reforço na mensagem. Em um filme que prima pelo tom realista, essas duas cenas não condizem com o que vimos nas últimas duas horas.

De qualquer maneira, o que fica para o espectador é o olhar de desespero e a voz embargada de Rourke dizendo: “Eu sei quem eu sou”. E, quando o elevador finalmente chega a seu destino, durante os créditos, temos a certeza de que ele realmente  irá arder no inferno.

Angel Heart. EUA – 1987. Suspense – 113 minutos. Direção e roteiro de  Alan Parker Elenco: Mickey Rourke, Robert de Niro, Lisa Bonet

A Mosca Branca

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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