Foto Estadão

O óbvio está tão ululante diante de nossos olhos, que nem vale a pena tentar análises ‘profundas’ de acontecimentos despercebidos, como se tudo fosse sutil e emaranhado. Não é. Permito-me ser coloquial como em uma indignação de botequim: o tempo passa, o tempo voa e o populismo continua numa boa. Em São Paulo, estamos entre dois populismos: um que se pode chamar de ‘direita’ e outro que (arggh…) chamaremos de ‘esquerda’.

“E aí, cara” – digo com um gole de chope -, “como é que um sujeito como esse Russomanno pode ser prefeito de uma cidade como São Paulo? Um elemento sem a menor experiência administrativa, um ‘malufista’, apresentador de programas sensacionalistas, autoproclamado protetor de consumidores, com seu sorriso de ‘Coringa’ fixo na cara- como é que pode?”

Terá milhões de eleitores que são dominados mentalmente pelos donos dos infames supermercados da fé, donos também de casas, aviões e prédios em Miami comprados com o dízimo dos pobres. Eles comandam os ignorantes com seu poder místico para a retomada do ciclo “Ademar, Jânio, Maluf, Pitta”, o populismo mais raso, mais primitivo. Seu ponta de lança é o Russomanno. Este é um fato gravíssimo: a ‘islamização’ da política sob dogmas da fé acrescenta um sabor medieval, oriental à demagogia. A ignorância política agrada muito aos comandantes do atraso, pois facilita o cabresto para as urnas e fortifica o evangelismo de mercado. Os ‘bispos’ de gravata não acreditam em Deus e só pensam nos bilhões que juntam em notinhas surradas nos bolsos vazios dos pobres que pagam para ter esperança.

Agora, a ignorância religiosa vai se casar com a ignorância política. Achávamos que as redes sociais modernizavam as pessoas, mas os Twitters e Facebooks só difundem a burrice geral: “bárbaros tecnizados” (Oswald).

No mundo inteiro, a crise econômica e política favorece líderes autoritários. Dentro dos impasses geram-se os canalhas. O fascista Chávez vai ser reeleito, o fanatismo árabe persiste para além da ‘primavera’, o repulsivo Mitt pode ganhar nos USA e levar o Ocidente ao caos. Aqui, a cidade mais importante da América Latina pode ser entregue a uma lucrativa “teocracia oportunista”.

É claro que os outros candidatos têm de ir a igrejas, com cara de carolas que não convencem, pois o povão sabe o que quer (até o filho do Ratinho pode ganhar em Curitiba, sabiam?)

As pessoas do enclave “Ademar de Barros/Jânio/Maluf” vão votar no Russomanno por quê? Por ordens do ‘bispo’, claro, mas também porque sua candidatura tem um sabor de negação da política costumeira, como apostar na ‘zebra’ porque os cavalos favoritos não resolveram nada. Há algo do ‘efeito Tiririca’ nisso tudo. Vejam na TV os milhares de rostos famintos de resposta para suas vidas angustiadas, pastoreados por ‘bispos’ assaltantes, gordos, vulgares e milionários com fazendas, aviões e apartamentos em Miami.

E é fascinante constatar que há uma sutil coincidência entre o pentecostalismo de direita e o “midiatismo” lulista, que também conta promessas abstratas, com um carisma milagreiro da aparência contra a realidade. Há o elogio do impalpável contra o concreto. Em ambos, no “midiatismo” e no “islamismo caboclo”, existe algo de divinal, de liturgia mística. Outra coisa une os ‘bispos’ evangélicos ao PT: nenhum dos dois quer governar a cidade – querem apenas a ‘tomada do poder’. Uns, prometendo o céu para os otários, os outros, para tomar São Paulo como o Palácio de Inverno na Rússia em 1917. O candidato do PT, Haddad, também é comandado por um outro Deus: Lula – como recentemente declarou a Marta Suplicy.

Na mitologia política brasileira, Lula continua o símbolo do “povo” que chegou ao poder. A origem “cristã” desse mito de operário lhe dá uma aura intocável. Poucos têm coragem de desmentir esse dogma, como a virgindade de Nossa Senhora. Quanto mais inacreditável um fato, mais valorizada a fé. Lembram quando caiu o telhado do “Renascer” e morreram vários? Ninguém desistiu; só os mortos.

Lula não precisa dizer a verdade; basta parecer. Pode mentir quanto quiser, que o que diz soa verdadeiro. É a “mentira revolucionária”. Mesmo quem sabe dos delitos que Lula presidiu vota nele, “mesmo assim”. Há pouco ele mentiu de novo em entrevista ao New York Times, inclusive ofendendo o STF, ao dizer que “o mensalão é uma mentira inventada pelos inimigos”. Mas não faz mal – Lula está “acima” da política; ele é um avatar histórico. Seus eleitores intelectuais pensam: mesmo os erros de Lula e do PT tinham de ser assim, pois Hegel diz que dessa negatividade surge uma nova verdade. É o mesmo que achávamos em 1968: “Sim, o socialismo errou ao esmagar Praga e Dubcek, mas é apenas uma ‘contradição negativa’ que chegará a outra positividade”. Os erros do PT são apenas um momento de passagem para o acerto. Hegel escreveu: “Para entender a história, há que afastar a contingência”. Por essas e outras, uma esquerda moderna que valoriza a facticidade é vista como desvio ou traição. Para muitos intelectuais, o conceito de “revolução” continua presente, como um tumor inoperável.

E é espantoso que esse óbvio fenômeno político, caudilhista, subperonista, aí, na cara da gente, seja ignorado por quase toda a intelligentsia do País. Recusam-se a ver o ‘regressismo’ do governo petista na aliança mais espúria: a velha esquerda com a velha direita. Tudo que foi preparado para desenvolver o País depois do Plano Real foi desqualificado e ignorado. Jogaram o País para trás em nome de um delírio ideológico. E não adianta falar. Somos chamados de ‘reacionários’.

O problema do candidato do PT é que a ‘massa atrasada’ (termo trotskista) está mais ligada em outro populismo, muito mais conservador, mais promissor do que vagos clamores revolucionários. Eles querem esperança imediata que os pastores fornecem. A chamada classe C é muito mais consumista do que sindicalista ou transgressiva. Preferem Jesus a Zé Dirceu.

Arnaldo Jabor|O Estado de S.Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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