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Sans Soleil do Chris Marker é o próximo. Uma meditação sobre a falibilidade da memória. Um filme epistolar. Um falso documentário. Uma mulher lê cartas da personagem fictícia Sandor, que viaja pela Guiné-Bissau e pelo Japão. Você lê na tela “Porque eu sei que o tempo é sempre tempo e o lugar é sempre e apenas um lugar, e o que é atual é atual só por uma vez e só por um lugar”. Já são 05:10 e você começa Vertigo, a história do detetive com Acrofobia. Você passeia pelos tetos e ruas inclinadas de São Francisco atrás de uma Kim Novak suicida. Você adormece e cai no sono e cai no sonho e acorda 16:15 assistindo La Règle du Jeu de Jean Renoir. Você não lembra de ter colocado esse. O clássico lembra um romance de Henry Green, desses exemplares, sobre a alta sociedade. bailes de máscara, ligações românticas, quartos de hotéis em estações de trem. Renoir cortou o filme, uma cena do negativo original se perdeu na guerra e nunca mais será vista. Às 20:35, você vê o início de Eyes Wide Shut do Kubrick, sem querer, na televisão.

No início do filme Alice, vestida de preto e óculos, à caminho de uma festa de natal, está sentada no vaso sanitário. Você assiste poucos minutos e não resiste a tentação de mudar o canal. O cordão do Bola Preta cruza a Rio Branco sob uma chuva fina. Milhares de guardas chuvas se movimentam até a igreja da Candelária. Providence começa 20:58, e é um Alain Resnais de 1977 que você ainda não viu. Com Dirk Bogarde e John Gielgud. Como quase todos dele, sua narrativa é um jogo bem armado com o tempo. Você assiste Eraserhead às 23:00. O projeto apaixonado de David Lynch. O preto e branco e prata filmado nos cenários de uma zona industrial. Os nomes das personagens te fascinam: “Mary X”, “Beautiful Girl Across The Hall”, “Man In The Planet”, “Pencil Machine Operator” e, finalmente, “Lady in the Radiator”,  que canta assombrosamente a canção In Heaven, que enche o ambiente de escuro e medo. “In Heaven everything is fine (…)”, você já ouviu Black Francis e os Pixies cantarem essa música.

Devo e Bauhaus também. Mas dessa vez, é como um fantasma dantesco segurando uma tocha em cinzas no canto do seu quarto. De repente seu mundo se transforma naquilo. Um pequeno apartamento, um toca-discos, plantas semi-mortas, sujeira. Seu amor será para sempre Mary X, mas você ainda se apaixonará pela Beautiful Girl Across The Hall.

Terça-feira 01:50, Vampyr de Dreyer começa. Criado a partir das histórias sobrenaturais de J. Sheridan Le Fanu, escritas em 1872. Carmilla é uma delas, uma história lésbica de vampiros. Você leu recentemente Le Fanu no subsolo de uma pequena livraria de um país distante e isolado, mais um lapso grotesco da sua ignorância, você pensa. Sombras estranhas na sua parede. Você avista, na sua cabeçeira, um envelope escrito “Para ser aberto depois da minha morte”. É claro que você não viu isso. É impossível. Você perde sangue. Você é enterrado vivo. Você é um cataléptico. Seu mundo, de repente, é difuso e desfocado como se tivessem amarrado um pedaço de gaze, à volta de sua cabeça, pela frente dos seus olhos. Na estreia dos “Vampyros”, o filme foi vaiado por uma audiência estúpida. Dreyer teve um colapso nervoso e acabou num hospital psquiátrico. Ele já havia realizado La Passion de Jeanne d`Arc. São 04:20 e agora só é possíve um dos filmes de Lubitsch. Você escolhe To Be or Not To Be. É a sua melhor companhia por todo esse carnaval. Você gargalha sozinho. O filme acaba e você o assiste de novo. Terça-feira 08:00, você aproveita as ruas inacreditávelmente desertas para assistir Berlin: Die Sinfonie der Großstadt (a Sinfonia de uma Metropolis) de Walter Ruttmann. Ele levou um ano para filmar esse único dia deste filme. Você adormece naquela dia de 1927.

Você levanta da cama, só para voltar e assistir o incrivelmente (realista!) cinematográfico Das Testament des Dr. Mabuse, de 1933, do mestre maior Fritz Lang. Você lembra de uma conversa linda entre ele e Godard incluída num dos extras de Le Mépris (Criterion Collection). O Desprezo começa às 18:50, com um dos créditos mais geniais da história do cinema e com as costas nuas de Brigitte Bardot enchendo seu quarto de amarelo, azul e vermelho.  Você lembra aos poucos do pouco que sabe da Odisséia de Homero, graças a curiosidade implantada pela obra de Joyce. Você levará dez anos para voltar. Você levará dez anos para esquecê-la. Você levará dez anos, e ainda assim será um mesmo dia, como o de Leopold Bloom. Você se perde dentro de um dos filmes que mais ama, porque você já o viu e reviu tantas vezes que o mar da Costa Malfitana já é referência de sentimento e não só de cor. Você vê Anna Karina no filme e ela não está ali. In Einem Jahr Mit 13 Monden, o ano das 13 luas de Fassbinder encerra sua terça-feira. O filme, realizado com o tormento causado pelo suicídio do amante do cineasta, é de 1978. Há cada sete anos, um ano tem treze luas. Nestes anos sofremos de altos e baixos emocionais e isso no conduz à depressão e às catástrofes pessoais.

Você ainda tem tempo de colocar a última sessão do cinema de rua vazio, de Bu San (Goodbye, Dragon Inn) de Tsai Ming-Liang; e de lembrar o que te trouxe até essa quarta-feira de cinzas, o que te fez escolher passar esses dias assim: Um conto de Dalton Trevisan chamado “Onde estão os natais de antanho?”.  Deste, você lembra de trechos, “por mais aflito, não pode sair, ainda não, há que esperar a passagem do natal (…) Ali, no cineminha pode esconder-se de si mesmo. Lá fora os sinos, buzinas, gritos de bêbados. Outro de menos, resmunga João, deste eu estou livre. Passada a hora pior, eis que é um homem. Está salvo daquele natal. Outro não haverá antes de um ano inteiro.”

Felipe Hirsch (O Globo)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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