A casa dos cães

Na casa ao lado há uma família de dobermanns. Quatro cães que andam pelo jardim. A casa é grande, estilo germânico, com telhados longos. Fica numa esquina. Ao lado, está meu prédio, de onde se pode ver do meu andar – o último – a movimentação dos cães pela casa.

Apenas uma pessoa os alimenta. Não há mais ninguém circulando pelo espaço, apesar do tamanho. São três anexos: a casa principal, uma outra menor e um ateliê. Ela ocupa metade da quadra. Muitas árvores e pássaros. Flores no jardim. Os cães ficam próximos à grade, perto da calçada. Latem para alguns, para outros não, e assustam o alvo com seu latido sufocante. Para mim não latem mais, passo todos os dias na frente da casa, e eles apenas me olham, atentos ao movimento. À noite, um deles sempre uiva profundamente, como se sofresse de algo irremediável. De dia, silêncio, a não ser pelos latidos para alguns.

O dobermann é originário da Alemanha, foi criado por Friedrich Louis Dobermann, no século 19. Considerado “um cão de guarda, com comportamento amigável e calmo, e de robusta constituição: tem um pescoço de bom comprimento, sendo proporcional ao tronco e à cabeça. É seco e musculado. O contorno emerge gradualmente, com uma curvatura suave. Portado empinado exibindo muita nobreza”, como é formalmente descrito em sites especializados.

Ouvi falar que esta raça tem a caixa craniana pequena, que pressiona seu cérebro e o faz ter dores lancinantes, por isso seu uivo assustador e seus latidos guturais. Não encontrei nada a respeito, mas toda vez que os vejo do alto da minha janela, andando em círculos pelo grande jardim da casa, penso que existe algo de aterrador neles.

Percebo então a frequência das falas altas ao redor. Estou sozinha numa multidão. Não quero ouvir, me incomodam as aliterações contínuas que não cessam de respirar. Preciso do fôlego solto, do silêncio tempestivo dos pensamentos. Sem a histeria ao redor, sem a pressa de continuar. Preciso da fala que se reflete no céu, antecede o vento, termina na pausa. O pensamento gira ao redor das dores e da memória. Nada foi em vão. Tudo registrado, segundo por segundo, na pele castigada dos ancestrais. Vigio seus olhos para tomar conta, neste fingir que não cansa, neste tocar que não toca, sem cessar, sem partir. Nada sai do lugar.

Nada se transforma em palavra, nem uma que a valha. Nem um sentimento que toque. Nem um gesto retribuído. Assim como a casa vazia. Não há indício humano. A casa é dos cães. Os passos de madrugada misturados aos uivos fazem crer que será assim para sempre.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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