A cidade e seu improvável livreiro

Quando cheguei a Curitiba, em 1964, me senti em Nova York. Que cidade, eu me perguntava, teria tantas livrarias? Eu vinha de uma cidade sem livrarias. Nesse circuito, algum tempo depois, eu procurava um livro de Arnold Hauser, História Social da Arte. Como não havia tradução brasileira, fui informado de que poderia encontrar uma edição em espanhol na livraria do Vignoles. Era o nome do livreiro. Um sujeito esquisito, me advertiram.

A livraria ficava, se não me engano, no primeiro andar da esquina da Rua do Rosário com a Praça Tiradentes. Entrava-se por uma escada estreita, de madeira. Subi passo a passo, os degraus rangendo a lembrar um filme de terror. Ninguém. Prateleiras, livros, um balcão. Andei de um lado para outro, pigarreei, arrastei o pé no chão. Já estava desistindo, quando emergiu, por detrás do balcão, um sujeito que me perguntou:
– O que você quer?
Assim, sem rodeios, um golpe de direita no queixo. Era um homem careca, de cara monolítica e sobrancelhas tensas. Ele balançou o corpo – parecia não se conter dentro de si – uma das mãos na cintura e outra sobre o balcão. Repetiu a pergunta:
– O que você quer?
Naquela época eu era um tímido profissional, capaz de horas de mutismo e de silêncios abissais e intransponíveis. Mal consegui dizer:
– Procuro um livro…
Hesitei. Súbito, o nome do livro sumira de minha cabeça. O careca atacou:
– É claro que procura um livro. Mas qual é o livro?
– História Social da Arte, do Arnold Hauser – lembrei, de soco.
Afastando-se ligeiramente, ele ergueu o tronco que inclinara para falar comigo. Retirou a mão que estava sobre o balcão, mantendo a outra na cintura e continuou, no estilo boxeador:
– E por que precisa deste livro?
Eis uma pergunta que eu não me fizera. Ou seja: queria ler, apenas isso. Já encontrara várias referências a ele em artigos, em livros, em jornais.
– Quero ler, murmurei.
– É claro, para que iria querer um livro, não é mesmo?
Ficamos os dois, olhos nos olhos, preparando o bote. Boxe puro. Temi que eu pudesse passar da timidez mórbida à agressividade mais desastrada, o que me acontecia na época. Por sorte, ele relaxou, ergueu os ombros, fazendo com que seu pescoço sumisse no meio deles, e estaqueou os braços sobre o balcão:
– Olhe, meu rapaz. Eu tenho o livro. Está ali, na prateleira ao lado da janela. Mas… – esperei pelo pior – …seu professor, ou seja lá quem lhe indicou este livro, não explicou uma coisa, provavelmente porque também não sabe. E me disse que eu perderia tempo lendo aquele livro. Está na moda, comentou com alguma repugnância, todo mundo anda lendo, todo mundo indica, mesmo sem ter a menor noção do que se trata. Moda, compreende? Moda é moda. Acontece que é um livro teoricamente fraco, com uma visão tosca das relações entre sociedade e arte. O autor, esse Hauser, leu Marx e não entendeu nada. E arrematou:
– Bom, o livro está ali. Se quiser comprar… Não aconselho.

Não comprei. Sumi escada abaixo. Só fui ler o livro meses depois, comprado no sebo da Voluntários. Em todos os casos, era outra Curitiba. Em qual das livrarias de hoje eu poderia encontrar um espécime raro daqueles: um livreiro que lia os livros que vendia, que tinha uma opinião a respeito deles – qualquer que fosse – e que, por discordância teórica e ideológica, preferisse não vendê-los a um estudante incauto?

Anos depois, me tornei amigo do Vignoles, quando ele já deixara de ser livreiro. Seguimos no estilo boxeador, como sempre, com diretos e cruzados de lado a lado. Uma grande figura. Um livreiro que sabia falar sobre os livros que vendia. Era outra Curitiba. Talvez outro mundo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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