A entrevista de Simone de Beauvoir e outras histórias de Sebastião – V

Em 1942, com a Europa conflagrada pela guerra e sem dinheiro para comprar obras de arte, Salvador Dalí aporta no cais de Nova Iorque com centenas de quadros para vender. Precisava de muito dinheiro para construir o seu castelo na cidade natal. Buñuel o procura no hotel. Dalí deixa o amigo no hall do hotel por duas horas, e após mandar chamar um barbeiro para escanhoar o rosto e aparar seu característico bigode, finalmente manda Buñuel subir. Gala nem dirige a palavra a Buñuel. No meio da conversa, Buñuel, que estava com três meses de aluguel atrasado, pede (dados e não emprestados) 50 dólares a Dalí. Salvador, depois de consultar Gala, nega o dinheiro. Buñuel vai embora puto da vida com o chá de banco e com a negativa do dinheiro. Naquela tarde, na entrevista coletiva, antes mesmo que lhe fizessem a primeira pergunta, Dalí disse que não entendia como o MoMa, um museu tão conceituado, tivesse como um dos seus empregados um comunista como Buñuel. Antes do fim da tarde, pelo alto-falante do Museu, Buñuel foi chamado ao RH. Despejado e desempregado, Buñuel levanta um dinheiro sabe-se Deus lá como e vai para Hollywood. Consegue trabalho como roteirista na Metro-Goldwyn-Mayer. Louis B. Mayer, o poderoso chefão da MGM, não pedia atestado ideológico para seus roteiristas, mesmo no período mais negro do macartismo.

Qualquer problema, mandava-os trabalhar em casa e assinar os roteiros com pseudônimo. Para atores e diretores, por razões óbvias, a coisa era mais embaixo. Mayer elogiava os roteiros de Buñuel, mas não os aprovava. Dizia que não tinham apelo comercial. Buñuel, cansado, depois de um ano de trabalho inútil, pede demissão e com os dólares da indenização se manda com a família para o México. No novo país, consegue filmar os seus roteiros e realiza dezenas de películas, pela Pelmex.

Era esse Dalí que o Sebastião França teria que enfrentar. No dia marcado, Sebastião vai até a empresa dos comes e bebes e sobe num ônibus, devidamente trajado de smoking, gravata borboleta, camisa e luvas brancas e sapatos devidamente engraxados e brilhando, com o cambojano e os outros garçons. Chegam na galeria de arte e entram pela porta de serviço. Ficam esperando o horário da abertura da exposição. Uma hora depois, a porta principal se abre e os convidados entram. Com todos acomodados, Salvador Dalí e Gala adentram a Galeria com a marcha triunfal de Aída ao fundo. Foi a consagração de Salvador e Gala. Enquanto servia os convidados, Sebastião não tirava os olhos de Dalí, sempre cercado por Gala e por um grupo de convidados. De repente, Salvador Dalí se retira do grupo e vai ao banheiro. Sebastião larga a bandeja na mão do cambojano e segue atrás. Não entra e fica esperando Dalí sair. Instantes depois, ainda secando as mãos, Dalí retira-se do banheiro. Sebastião ataca, falando em espanhol: “Dom Dalí, yo soy un periodista del Jornal do Brasil y a mi me gustaria unas preguntas!” Dalí encara Sebastião com o ódio nos olhos e começa a gritar: Yo no hablo para reporteros del tercer mundo. Afuera. Afuera!”. Sai berrando pela segurança. Os seguranças, como Dalí gritava em castelhano, demoraram para perceber o que estava acontecendo. Sebastião, aproveitando a lentidão dos guardas, escapole pela entrada de serviço, entra no primeiro táxi e vai para casa. No outro dia, levou o uniforme completo para a lavanderia e dois dias depois, no Instituto pediu que o cambojano o devolvesse. Nem passou na empresa para receber o pagamento, ficou em dúvida se iriam saldar e não desejou arriscar. Ficou também sem os cem dólares do JB, além do prejuízo com a tinturaria.

No início dos anos sessenta, Buñuel retornou à Espanha e filmou “Viridiana”. Apesar do seu passado, a ditadura de Franco fez que não viu. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes. Quando viu o filme, a censura de Franco proibiu a exibição. Buñuel, para evitar problemas, voltou à França, onde dirigiu Catherine Deneuve em “A Bela da Tarde”. A película foi um sucesso mundial. Sebastião França foi entrevistá-lo e ele, simpático, respondeu a todas as perguntas. Mesmo que não tivesse sido pautado, Alberto Dines mandou pagar os cem dólares. Em 1970, voltou à Espanha e realizu “Tristana”, com Fernando Rey e sua nova musa, Catherine Deneuve. Em 1972, emplacou “O Discreto Charme da Burguesia”, de novo com Fernando Rey e sem Catherine, que não se interessou pelo Buñuel, preferiu o Marcello Mastroianni, com quem teve uma filha. A última pauta que Sebastião recebeu, antes de concluir o curso, foi um pedido de entrevista com Friedrich Dürrenmatt, dramaturgo suíço, que havia escrito “A Visita da Velha Senhora”. O filme, baseado na obra de Dürrenmatt, chamado “A Visita”, com Ingrid Bergmann e Anthony Quinn, iria estrear no Brasil. Sebastião sabia que o dramaturgo era suíço, mas não tinha nem ideia de onde morava. Foi mais uma vez ao Le Monde, o editor de cultura, que já era seu chapa, falou que ele morava em Berna. Sebastião naquela noite descobriu de qual gare saia o trem para a citada cidade. Foi na estação, se identificou como correspondente e sacou as passagens de ida e volta. O JB tinha conta corrente na ferrovia francesa. Fez baldeação em Genebra e chegou à Berna de manhã cedo. Foi forrar o estômago e esperou até as dez da manhã para telefonar, tinha descoberto o número na lista telefônica da cidade. O próprio Dürrenmatt atendeu a ligação e falando em francês os dois se acertaram. Dürrenmatt disse que Sebastião, por ter viajado a noite inteira, se hospedasse no hotel na frente da estação, para descansar, e disse que era para anotarem o valor da conta que ela pagava depois. Podia também almoçar às suas expensas.

Marcou de receber Sebastião às 19, jantariam e ele daria a entrevista com muito prazer. Sebastião, desconfiado, foi até o hotel e lá contou a história. O gerente do hotel disse que era isso mesmo. Herr Dürrenmatt sempre agia assim com todos os jornalistas e no outro dia mandava o chofer pagar as despesas. Sebastião tirou um longo cochilo, almoçou o melhor da culinária suíça e antes das dezenove o chofer do Dürrenmatt estava lhe esperando na portaria do hotel. Levou-o até a casa de Dürrenmatt e o mordomo, com traje a rigor, o recebeu e o conduziu para a sala de estar. Abriu uma garrafa de Möet Chandon, brut imperial, e deixou o recinto. Sebastião estava sorvendo o precioso líquido quando viu o motorista descendo as escadas carregando uma mala. Não entendeu nada. Minutos depois, aparece na sua frente Dürrenmatt, dizendo que naquela tarde tinha recebido um telefonema de Frankfurt dando conta de que a atriz principal da sua peça havia fraturado a perna e lhe esperavam, em caráter de urgência, para escolher outra intérprete. Como não viajava de avião e nem de trem, ele e o motorista iriam de carro pela noite inteira. Mas, fez questão de frisar, o mordomo serviria o jantar para Sebastião.

Pediu que Sebastião redigisse as perguntas que ele responderia quando voltasse de viagem. Deu adeus e se mandou com o motorista. Sebastião pediu papel e caneta e foi atendido. O mordomo, após o final da redação das perguntas, pediu que Sebastião lhe acompanhasse até a sala de jantar. Sebastião sentou na cabeceira da mesa, o mordomo abriu um Chateau Latour safra de 1961, serviu uma Evian sem gás. Minutos depois, trouxe um foie gras. Degustada a entrada o mordomo trouxe uma imensa Lagosta ao Thermidor. Na sobremesa, um crème brûlée. Após um café bem forte e um digestivo alemão que o Sebastião, com a língua enrolada não conseguiu pronunciar o nome. Sebastião fez a maior refeição da sua vida sem gastar um centavo. O mordomo chamou um táxi e encaminhou o Sebastião até a estação. À meia-noite, embarcou para Paris, não esquecendo da baldeação em Genebra. Dias depois, chegou na sucursal do JB um envelope cujo remetente era Dürrenmatt. Todas as perguntas haviam sido respondidas nos mínimos detalhes. Sebastião, ainda com a barriga cheia, recebeu mais cem dólares.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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