A garota grossa

Ah, ela é assim, superautêntica, tem uma personalidade forte!

Pediram que eu tivesse paciência, porque ela havia acabado de perder um gato. O animal fora atropelado na sua frente, uma tragédia. “Ela é ótima pessoa, só está muito abalada.”

Meses depois, já com um novo bebê felino, a garota seguia dando suas patadas, sobretudo direcionadas a mim. Se eu sugeria um filme, ela já tinha visto “aquela merda”; se eu elogiava um colunista de jornal, me atacava: “Afe! Só gente que não entende nada de economia perde tempo lendo esse cara”; se eu mudava de assunto para não discutir, ela queria voltar ao tema, porque não foge de nenhuma conversa.

Peguei minha bolsa para ir embora, mas meus amigos insistiram mais uma vez: “Ah, ela é assim, superautêntica, tem uma personalidade forte!”. Não, minha gente, ela é apenas uma vaca mesmo. “Calma, Tati, e a sororidade?”

Meses depois, banhada em sororidade, sorri incansavelmente para a garota durante um jantar, até que ela me perguntou se eu estava rindo da cara dela. Entendi que toda aquela grosseria era apenas o básico 1 do Freud para crianças. A versão arrogância em livro para colorir. Ela se sentia uma bosta, e a petulância era a sua armadura. Fui tomada por um carinho materno e resolvi dar mais uma chance.

“Estou querendo me aproximar. Você está jantando na casa de um dos meus melhores amigos, e ele te adora… Acho que não me custa tentar.” Ela agiu de forma bem cínica e disse ok. Achei que o “ok” era uma piada e ri. E ela respondeu que não era uma piada. E que também ia “tentar gostar de mim”. E, pronto, fez uma cara de puta da vida e me deixou falando sozinha. É o tipo de pessoa que transforma tudo o que você fala em ofensa pessoal. E é tão boa nisso que você realmente se pergunta se não merece ser tratada daquela forma.

Meses depois, a rude senhorita apareceu em uma festa, recém-separada do namorado, e estava que era pura deseducação. Destratou garçons com a clássica desculpa dos defensores de direitos humanos que apenas “odeiam mau serviço”. Pensei que a dor a tivesse humanizado. Acho que essa é a frase que mais ouço em reuniões de roteiros: “Ah, faz o personagem sofrer para humanizá-lo!”. Senti-me como uma assinante on demand daquela baixaria. Se eu estava ali, a observando, era porque tinha visto aquela carinha escrota no carrossel de possibilidades da festa e tinha decidido clicar justamente nela, a fim de conferir o que essa temporada prometia.

Puxei papo: “Nossa! Como você está bonita hoje!”. E ela não suportou o meu elogio. Então eu não tinha nada melhor para dizer? Pensei em mandá-la à merda ou a um psiquiatra, mas resolvi olhar seus sapatos e pedir o nome da loja. “São tão elegantes!” A moça começou a espumar de raiva e tomou certa distância. Acontece que eu não podia mais parar. Elogiei seu cabelo, seus dentes, a cor das suas unhas, sua voz, seu hálito. E ela foi ficando corcunda, enjoada, terrivelmente insultada. Segurava a boca do estômago como se eu a estivesse apunhalado. Mas eu não podia parar. Elogiei seu perfume, a promoção que tinha acabado de receber no escritório de advocacia, seu braço forte, “anda malhando?”, a maquiagem.

Ela foi passando cada vez mais mal, precisou sentar, pediu que lhe trouxessem água. Mas eu era incansável. Elogiei seu mestrado, sua facilidade com as palavras, suas coxas firmes, tudo que ela era e tudo que havia se tornado, e que belo passado e que futuro promissor. A garota grossa implorou que mudássemos de assunto. Mas eu não podia mais, eu não fugia de nenhuma conversa.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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