A naturalização da Covid-19

Ontem, a percepção da naturalização da Covid-19 chegou por mensagem privada de uma rede social: “Oi, tudo bem com você e com seus familiares?”. Bateu um estranhamento, uma vez que, há tempos, ninguém mais se dirige assim, com esse interesse e com essa preocupação. No início da pandemia, sim, a gente tinha uma necessidade – desesperada até – de sondar como as pessoas estavam lidando com essa novidade desagradável, ameaçadora e como poderíamos apoiar, manifestar nossa empatia diante desse assombroso desconhecido. Uma amiga conta que até enviou um convite de amizade ao crusch, a quem nunca tinha tido a coragem de dirigir uma palavra antes, diante do pânico de que a pandemia tirasse ele do seu caminho de vez. Bem nos moldes da personagem da música de Assis Valente, que diz que “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar (…)”.

O estranhamento bom que se seguiu àquela pergunta também transmitiu a noção exata da naturalização da Covid-19 nas nossas vidas. Mesmo mantendo o isolamento e as noções elementares de sobrevivência, já estamos falando dos resultados do futebol, tretando pelas mínimas coisas do cotidiano, vendo a propaganda eleitoral ocupar os espaços no rádio e na televisão e, quando precisamos sair para algum bate e volta na rua, já ficamos com a impressão de sermos os únicos poucos persistentes a manterem-se em isolamento e a seguirem as regras e recomendações para evitar a propagação do vírus. A cidade fervilha e a sobrecarga de atendimento para os profissionais da saúde, que tanto nos chamava à responsabilidade sobre os impactos coletivos de atitudes individuais, reside agora no ambiente da invisibilidade. Naturalizada está!

O “copo meio cheio” da banalização é termos vencido aquele medo paralisante do começo e, mesmo que assumindo riscos – até que se tenha um antídoto eficaz comprovado ou uma compreensão maior do comportamento desse vírus, será sempre um risco irresponsável, sim -, encontrarmos formas de, se não da retomada da vida por completo, abrir espaços de convivência e de mobilidade nesse nosso habitat. Mesmo os planos traçados já soam mais factíveis, plausíveis, ainda que ilusórios e distantes no horizonte futurístico. O “copo meio vazio” está na razão lógica de perceber essa naturalização como produto de um esgotamento físico e mental. É esse cansaço que impele as pessoas a tomarem decisões perigosas e a demonstrarem, no quesito empatia, que o “velho normal” sempre esteve latente e virá com tudo nesse mundo de distanciamentos impostos pelas desigualdades, pelas ignorâncias, por dogmas e por castas.

O tal do alardeado “novo normal”, a partir das reflexões de autoconhecimento e dos balanços feitos sob o olhar da ética do cuidado, deverá se restringir a um universo pequeno de mentes e de hábitos. A alegria manifesta e desesperada é do retorno ao que se fazia antes, sem grandes racionalizações. Serão incorporadas, sim, alternativas e inovações rentáveis, lucrativas, enquanto que agregações imateriais aprendidas nas lições da pandemia ficarão anestesiadas no frenesi da retomada.

Quase que ao mesmo tempo em que vivemos isolados, a população do Distrito Federal convive com uma estação seca medonha e com picos de ondas de calor insuportáveis, que motivam inundar hoje as redes sociais dos moradores da capital federal com comemorações e danças da chuva, diante das primeiras gotas de água caídas do céu em mais de seis meses. Passada essa euforia, o que mudará no cotidiano de quem sofreu as intempéries? A prevenção e a resiliência vão apontar os caminhos de um “novo normal” para se buscar entender as razões e tentar evitar no futuro situações como essas também? Tenho cá minhas dúvidas…

Quase que ao mesmo tempo em que vivemos isolados, de novo, grande parte da população de Curitiba e da Região Metropolitana amarga as consequências de uma crise hídrica sem precedentes em sua história e tem sua rotina alterada pelos ditames de um rodízio no abastecimento de água nesse território afetado. Tão logo se alcance novamente um nível de água nos reservatórios da capital do Paraná, que permita um abastecimento regular às famílias da Grande Curitiba, haverá “novo normal” nos padrões de comportamento e na gestão dos recursos naturais por essa população afetada ou apenas um relaxamento generalizado? As desigualdades que fizeram essas adversidades serem mais ou menos percebidas na sociedade tão pouco ajudam nas mudanças de atitudes. Como exigir alterações no modo de vida de quem nem sequer percebeu os impactos da crise hídrica na prática por não viver nos bairros mais periféricos ou por residir em locais com caixas d’água que suportam melhor o rodízio e dão conta do consumo das famílias no período em que dura o corte no fornecimento da água que vem da rua?

Estamos no meio de uma campanha eleitoral atípica. Fora do contexto da pandemia, o momento das eleições municipais é uma das poucas oportunidades que temos de debater e de discutir as mazelas locais, pensar a cidade e propor soluções. E uma das raras vezes em que os olhos e ouvidos das pessoas se abrem para essa discussão. Mas, voltando a enxergar a conjuntura de um ano sob os rigores da pandemia do novo coronavírus, esse debate está mais do que nunca invisibilizado e anestesiado. Uma frase do jornalista e escritor Frei Betto, muito lembrada nos debates políticos sobre o compromisso social dos eleitos para representar os interesses do povo, nos dá a dimensão do dilema e dos percalços nas escolhas da campanha atual: “a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”. Em outras palavras e com o agravante desse contexto de poucas “caminhadas”, quem vai se importar com algo além do próprio umbigo neste momento?

Na live de ontem, o jornalista André Trigueiro abordou, entre tantas lições embutidas na ética do cuidado, também o tema do amor e do direito dos animais, soltando uma frase nessa mesma perspectiva do pensamento do Frei Betto: “quando a gente conhece, a gente ama”. Que a espera e a esperança da chuva, que a espera e a esperança do abastecimento regular de água nas torneiras, que a espera e a esperança das vacinas nos ensinem a sermos diferentes e a mantermos essa empatia e fraternidade no ar. O Natal está chegando. A última festa popular com permissão para aglomeração foi a do Carnaval de 2020 e isso porque não havia, até então, nenhum registro oficial da Covid-19 no país. Hoje, passam de 150 mil os registros de mortes pelo novo coronavírus. Se formos celebrar algo no futuro, que seja a naturalização dos aprendizados e o cultivo da vida dentro de uma nova perspectiva, mais responsável, menos alucinada e menos insana. Ainda e até porque, voltando a Assis Valente, “o tal do mundo não se acabou”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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