A noite em que estraçalhei o Corvo no pingue-pongue

Carlos Frederico Werneck de Lacerda, 46 anos, raquete na mão, me esperava com um riso sarcástico e as garras afiadas do Corvo. Era uma noite de maio de 1960, ele deputado federal, 46 anos, eu jornalista de Curitiba, 22 anos, fazendo um estágio no Diário Carioca. Estávamos sob o teto acolhedor do escritor Aníbal Machado, que abria sua casa aos domingos para a intelectualidade e o que mais pintasse. Rua Visconde de Pirajá, 487, Ipanema. Era uma casa simpática, com um pequeno jardim e um grande quintal.

Lacerda era daqueles políticos que se amava ou se odiava. Entrou para o folclore político como O Corvo do Lavradio (rua do seu jornal, a Tribuna da Imprensa.). Suas seguidoras eram as “mal-amadas”. Pertenceu à “banda de música da UDN” – também chamada de “as cassandras da oposição” – um grupo notável de políticos de direita que não aceitavam os governos democráticos de Getúlio, JK e Jango. Envolveu-se num golpe para impedir a posse de JK, Presidente eleito democraticamente em 1955.

A bordo do Almirante Tamandaré, os golpistas foram contidos pelo General Lott, legalista, depois que a artilharia do exército alvejou o cruzador (foi o último tiro disparado na baía de Guanabara.). Nos anos 60 o Rio foi infernizado por uma praga de insetos: o humor carioca os batizou na hora de lacerdinhas. Carlos Lacerda levou dois tiros no pé. Um real, no atentado da Rua Tonelero, em 1954; outro simbólico, um tiro que ele mesmo disparou ao apoiar o golpe de 1964 na vã tentativa de usar os militares para assumir a Presidência da República, seu sonho dourado. Desiludido, já em 1966 participou da Frente Ampla com os ex-adversários JK e Jango. Os militares o castigaram no AI-5, cassando seus direitos políticos.

Pois bem, naquela noite em que Lacerda me desafiou “para uma partidinha” na domingueira do Aníbal, como democrata e esquerdista eu fui à forra a estraçalhei o Corvo. Afinal, eu era um campeão forjado desde criança na lendária mesa de pingue-pongue do meu tio e padrinho Muggiati Sobrinho em Guaratuba. E o revide contra o golpista renitente foi na base de golpes de mestre, com saques indefensáveis e traiçoeiras raquetadas de efeito.

Só reencontraria Carlos Lacerda dezesseis anos depois, eu na função de editor da revista Manchete, ele como colaborador. O dono da empresa, Adolpho Bloch, dera a ele uma página dupla, o Lacerda, com sua avidez insana, escrevia um texto para quatro páginas – e ainda tentava usar a Manchete para descarregar todo o seu rancor contra a ditadura. Segunda-feira eu fechava a revista num ritmo alucinante, às vezes trinta ou quarenta páginas com os acontecimentos do fim de semana. Não teria tempo para lidar com o Lacerda. Então o diplomático Zevi Ghivelder foi escalado por Adolpho – que não queria encrenca com os generais – para passar o dia inteiro negociando cada palavra, cada vírgula do seu artigo.

Desgostoso da vida, Carlos Lacerda morreu de infarto num hospital carioca em 21 de maio de 1977. Correu o boato de que a causa foi uma injeção errada que lhe deram. As mortes de Zuzu Angel, JK, Jango (em abril, agosto e dezembro de 1976) e Lacerda – no espaço de um ano – se prestaram à Teoria do Complô de que foram todos eliminados pela ditadura. Se non è vero, è ben trovato…

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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