A Tragédia Latino-Americana

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Ao entrar no teatro, as luzes da sala ainda acesas, vemos uma monumental fortificação no centro do palco. Trata-se de um cubo formado por grandes blocos retangulares de isopor que sugerem pedra e, a depender da luz, gigantescos torrões de açúcar ou mesmo tabletes de cocaína.

O uso do polímero provoca outras associações: ele é plástico de lenta decomposição, derivado do petróleo

Ao longo do espetáculo, entre ou durante as cenas, os atores irão recompor e destruir esse cenário em muros, planos e torres até que terminem a peça exaustos. É visível a energia física e mental desprendida em carregar esses blocos, equilibrá-los sobre as costas e, depois, uns sobre os outros. Até que tudo vá abaixo novamente, sempre outra vez, sempre pelas mesmas mãos.

Tal exercício de destruição é caro a um continente cuja maior metrópole, São Paulo, parece uma cidade do futuro que envelheceu (Wim Wenders), onde tudo parece que é ainda construção e já é ruína (Caetano).

A distopia para nós não é ficção ou universo paralelo: é a nossa gênese. O paraíso perdido encontrado pelos invasores resultou num processo de etnocídio e escravidão cujas cicatrizes são a principal raiz da nossa identidade. Utopia de uns, pesadelo de muitos. “Enquanto descansa, carrega pedra”, ditado popular brasileiro que remete aos escravos, nos intervalos da mineração, carregando pedras que haviam tirado do lugar ao buscar ouro.

As pedras/blocos de isopor são o único elemento cênico presente na “Tragédia Latino-Americana” de Felipe Hirsch, que estreou ontem no MIT (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) e fica no Teatro do Sesc Consolação até o dia 17/4.

Essa síntese cenográfica que explode em fragmentos ao longo das quatro horas da peça não se relaciona apenas com um lugar no mundo, mas com a construção/desconstrução das próprias linguagens do teatro. E da música, muito presente através das dissonâncias vertiginosas e texturas rascantes compostas e conduzidas por Arthur de Faria.

MANDALA

“A Tragédia…” é uma mandala operística e agridoce. Tenta reconstituir pedaços –cacos de vidro, a cena de um crime?– de uma narrativa ancestral (des)equilibrada entre o niilismo e a esperança.

Quando você tiver vontade de chorar, vai rir –às vezes, de puro desespero.

A experiência é conduzida por textos garimpados com obsessão por Hirsch, cujo talento de encenador soma-se a outro: com esta obra e a “Comédia Latino-Americana” que virá, ele torna-se o mais importante antologista de literatura latino-americana do país.

Capaz de trazer à luz, entre clássicos como Lima Barreto e Cabrera Infante, a obra de escritores ainda obscuros aqui e em toda a parte, gênios como o argentino Salvador Benesdra e o mexicano Gerardo Arana. (Ambos suicidas precoces –e precoces, digo, pois poetas ou prosadores desobedientes como os dois têm destino marcado nestas terras. Lima Barreto que o diga, aliás.)

O conjunto excepcional dos atores entrega-se a uma encenação que assume riscos de desabamento constante –há uma presentificação radical das suas performances, no fio da navalha, e é comovente testemunhar a entrega com que isso é assumido por todos.

Não há espaço para fru-fru e teatrinho aqui: somos durões. Sensíveis, mas durões –entramos tanto na canela quanto no coração.

Entre as cabeças e as carnes, que extirpamos de nós depois de madeiras e minérios, esses homens e mulheres nos oferecem a visão do espírito de uma época, de um lugar no mundo, de uma forma nova de fazer teatro, literatura e arte. Pateticamente cultos, anárquicos na forma, eternamente subversivos.

Salve a tragédia latino-americana. Por ela, por causa dela, apesar dela, estamos aqui muito mais vivos e profundamente acordados que o resto do mundo. Só precisamos sobreviver a nós mesmos. No Brasil de 2016, espetáculos como este –um farol varrendo o escuro do mar em fatias de luz, totem com olhos incandescentes para além do abismo– ajudam.

P.P.Cuenca – Folha de São Paulo|11|3|2016

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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