Água

Estou há oito horas chorando sem parar e isso me dá um sinal. Não estou exatamente triste, apenas muito emocionada “com essa coisa toda”. Pensar frases que contenham as palavras todo, tudo, muito e imensamente me dão um sinal.

Aguentei longos e bravos dez meses sem nenhum remédio. Se você é meu amigo e jantou ou almoçou ou fez reunião comigo durante esses meses, vai se lembrar de algum momento estranho em que, de repente, fiquei séria e inventei alguma desculpa pra ir embora. Eu fui embora de todos os lugares em que estive por mais de 40 minutos nos últimos dez meses. Eu brinco que sofro da síndrome da fuga repentina, mas em algum lugar, escondido dentro de mim, não estou rindo da minha piada.

Foram 30 anos sem nenhum remédio, me perguntando “como faz?”; seis anos com remédios, me perguntando “como faz pra voltar a sentir aquela coisa tão viva que se pergunta o tempo todo ‘como faz?'” e dez meses matando a saudade das palavras todo, tudo, muito e imensamente. Eu estava com tanta saudade (de mim) que na primeira semana já visualizei a lama, mas a abracei como um filho abraça o pai retornando da guerra depois de ter sido dado como morto.

Eu disse que parei porque estava gorda, disse que parei porque queria engravidar, disse que parei porque precisava sentir o corpo tremer ao ver um homem interessante, disse que parei porque estava ótima, disse que parei porque estava madura. A verdade é que eu parei porque não aguentava mais sentir tanta saudade de mim. A gente sente falta de cada coisa!

Perdão se esse texto está ficando sub Clarice Lispector, cheio de “eu enquanto ser saudoso de mim mesma” (eu amo a Clarice, mas tenho horror a qualquer pessoa que tente se parecer com ela). Peço desculpas também a todos que, sem entender muito bem, me viram pegar a bolsa e desaparecer falando ao celular com ninguém: “Oi? Como? Já estou indo!”. Isso não vai mais acontecer.

Mandei uma mensagem “receita” para meu psiquiatra e ele apenas respondeu: “Até que você demorou pra pedir água”. Não vou mais perfilar os chinelos de modo que seu desenho acompanhe o desenho do pé da mesa. Não vou mais conjecturar que uma dezena de pessoas arquiteta uma centena de planos contra a minha pessoa. Não vou mais estalar o dia inteiro todos os ossos do corpo como se eu inteira fosse um plástico bolha apenas porque tudo incomoda, angustia e vaza. Não vou mais pensar todos os dias na mulher do apartamento de cima que se atirou e carimbou a grama com o “ligue os pontos” de um fugitivo rendido. Não vou mais provocar as pessoas nas redes sociais apenas porque o roçar de mentes me atrai mais que ser adorada em compartilhamentos de uma bondade frígida. Em compensação, a partir de amanhã, todas as músicas e filmes e livros e filhos abraçados às suas mães… vão me emocionar o mesmo que um sanduíche de queijo branco. Maldita e maravilhosa camisinha no cérebro.

Não sei se é questão de derrota, mas eu estava na estação, eu vi quando chegou o trem, eu vi várias pessoas entrando, mas eu não consegui. Do planeta “grandes adultos” vocês me mandam tchau, eu respondo com um “joinha” cínico, aqui de casa, ainda tentando descobrir como faz pra fechar o zíper da pele e não sentir o oxigênio estapear uma carne viva. Sorry, ficou sub Clarice, né? Pior que amanhã, nem isso. Todo, tudo, muito e imensamente, até qualquer hora.

tatidois

Tati Bernardi – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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