Aos gênios, o esquecimento

Escrevi também com alguma dose de razão que ainda havia muito a navegar nesse imenso rio corrente, o que pretendo fazer enquanto houver alento para continuar remando. Caso contrário, levo o pequeno barco para a margem e o entrego a quem melhor apetrechado tenha o desejo de prosseguir a viagem. Que é longa, mas agradabilíssima…

Poucos sabem e… a bem da verdade… não é outro o tratamento dado aos gênios que o país abrigou em outros tempos, especialmente nas artes do espírito, mas viveu em Curitiba entre os anos 1950 e 1980 um portentoso intelectual chamado Ernani Reichmann (1920-1984), cuja obra hoje desconhecida chegou a quase 50 títulos entre ficção, filosofia, memória, diários e ensaios sobre multiformes assuntos.

Descobri na blogosfera extenso artigo escrito pelo cineasta Sylvio Back, publicado no Caderno de cinema, na edição referente a setembro de 2013, algum tempo depois da realização pela Academia Brasileira de Letras de um seminário sobre os 200 anos de nascimento de Soren Kierkegaard (5 de maio de 1813), “o genial escritor, teólogo e filósofo dinamarquês”.

Mas, o que tem uma coisa a ver com a outra? Explico seguindo o raciocínio de Sylvio Back: “Algo que pareceria impensável deixou soberbos rastros históricos e não só acabou acontecendo, como está registrado em dezenas de livros e anotações ainda por serem publicadas. Da gélida e sombria Copenhagen à friorenta e luminosa Curitiba, Soren Kierkegaard (1813-1855), praticamente um século depois, teve seu tormentoso périplo existencial introjetado e reimaginado por um brasileiro dos anos 1950/1980, fato único na América Latina”.

O seminário da ABL foi coordenado pelo poeta Marco Lucchesi, “com brilhantes palestras dos acadêmicos Eduardo Portella e Sérgio Paulo Rouanet, e dos professores Emmanuel Carneiro Leão e Vamireh Chacon”, lembra Sylvio Back. É nesse contexto que “o nome de Ernani Reichmann, hoje desconhecido, mas a propósito dessa data redonda vem a lume”.

Natural de Erechim (RS), Reichmann foi escritor, filósofo, ensaísta, professor universitário e homem público no Paraná (secretário de Estado no governo Ney Braga) entre 1961 e 1965.

A nota de destaque e, a bem dizer, oportunamente lembrada no seminário sobre os dois séculos do pensador dinamarquês, é que Ernani Reichmann “é o primeiro biógrafo de Kierkegaard no Brasil e do continente americano, como também aquele que de forma inédita e inaudita, arriscou-se a reviver seus ‘temor e tremor’ debaixo da linha do Equador, inclusive, aprendendo a língua do mestre para lê-lo e reinterpretá-lo no original”, segundo Sylvio.

A biografia Soren Kierkegaard foi publicada em 1972 por Edições JR, de Curitiba, num volume de 403 páginas, fazendo com que o autor entrasse para a história da cultura brasileira e mundial: “Ainda que muitos kierkegaardianos, desde então, venham bebendo em seus textos e traduções, registra-se um triste hiato em reconhecer-lhe a estatura intelectual e o INVESTIMENTO sensorial nas volições, medos e sonhos de seu mestre”.

A manifestação de Sylvio é também o tributo do “amigo cotidiano de Ernani Reichmann naquelas quadras, à ÉPOCA, jornalista iniciante, almejando ser escritor e cineasta, tive a alegria e a recompensa poética de conviver com ele e seus estimulantes ensaios de fundo e forma kierkegaardianos, muitos deles publicados no suplemento literário letras&artes”. O suplemento foi editado pelo próprio Sylvio na redação do extinto Diário do Paraná.

Não é difícil imaginar quão prazerosas e frutíferas tenham sido aquelas tertúlias, numa ÉPOCA em que “éramos todos jovens, belos e irreverentes”, como reconhece o cineasta ao assinalar também a inevitável rebeldia, “digamos, às avessas, já que nos alinhávamos a Jean-Paul Sartre, neomilitante do comunismo, tentando conciliar o irreconciliável, liberdade e socialismo real”.

Sylvio admite que “coube a Ernani Reichmann, literalmente, nosso ‘professor’ de Kierkegaard e existencialismo francês, também apaixonado por Albert Camus, colocar-se como um pertinente contraponto à nossa heróica radicalidade, que não enxergava o pretume assassino à raiz de toda utopia”, confessando que “pessoalmente, era o mais inconteste na defesa de Sartre, cujos romances me conflagraram durante anos, pois como filho de pai judeu húngaro, sua diatribe contra a criminosa invasão de Budapeste pelos soviéticos em 1956 me comoveu durante anos”.

Como se estivesse escrevendo o roteiro de um filme que entremeasse as trajetórias humanas de Kierkegaard e seu discípulo tropical, Sylvio esclarece que “bem no diapasão metafísico de Soren Kierkegaard é quando Reichmann tenta ‘incorporar’ feito médium, eu diria, material e espiritualmente a Angst (angústia) do poeta nórdico, aliás, palavra de sentido multinacional, segundo Vamireh Chacon em sua palestra (no seminário da ABL), pois tanto vale em alemão quanto na Dinamarca, Noruega e Holanda. O gesto lúdico e performático de Reichmann é uma façanha irrepetível, jamais empreendida por ninguém, nem antes nem depois!”.

Para recolocar uma questão citada na abertura desse artigo – o desprezo incompreensível devotado pelas novas gerações aos verdadeiramente gênios — vale a citação de Back do registro feito pelo próprio Reichmann em autoentrevista: “Minha experiência não poderá ser ignorada”, plasmando a percepção de que seria notado e reconhecido apenas em algum futuro que, aparentemente não chegou. O contato diário com o intelectual permitiu a Sylvio declarar que o amigo admirado “sabia que o leitor de seu tempo não o lia, não tinha editor, não tinha livreiro, era um autor de seis mil páginas praticamente inédito”.

Escrevendo em 2013, o criador de Aleluia Gretchen lançou um desafio que infelizmente não teve acolhida: “Quem sabe os kierkegaardianos brasileiros programem para 2014 umrevival editorial e biográfico de Reichmann nas comemorações dos seus trinta anos de morte”.

A profunda paixão de Reichmann pela obra do chamado “pai do existencialismo”, além da biografia, se retrata, embora Back tenha dito que ao invés de retrato, “espelho” seria melhor em se tratando de Kierkegaard, foi descrita em dezenas de cadernos e, principalmente “nos três volumes de Intermezzo lírico-filosófico, dos anos 60, em que ele resume toda a kierkegaardiana de sua lavra e fruto de seu mergulho no universo trágico do autor. Infelizmente, essa ciclópica estante de ensaios, memorialística e romances está fora de mercado, sendo apenas encontrável em sebos, físicos e virtuais, o que não deixa de ser, sim, um atestado de permanência, segundo o poeta, acadêmico e bibliófilo, Antonio Carlos Secchin e, de forma randômica, disponível em bibliotecas de universidades, especialmente, do sul do país”.

Reichmann era da mesma estirpe moral de Kierkegaard, na avaliação de Sylvio Back, “avesso ao espírito de horda, equidistante da igreja e da política, ainda que na juventude simpatizante da Ação Integralista Brasileira, e como ele, afeito a pseudônimos e codinomes, antes que aos heterônimos de Fernando Pessoa, como adverte o filósofo Sérgio Paulo Rouanet, para dizer-se múltiplo, controverso, um homem em permanente estado de graça&desgraça, até nas suas relações afetivas e amorosas, muitas delas marcantes que lhe matizam a própria escrita, toda ela de corte confessional e dialógica como se jamais fosse dada à leitura e à fruição de terceiros”.

Enfim, o gênio incompreendido na terra em que nasceu e viveu por 64 anos, foi saudado como merecia pela “própria Dinamarca” que “ficou pasma ao se dar conta que nos longínquos trópicos alguém tentava reproduzir a nebulosa febre d’alma de Kierkegaard, a sua incontornável angústia do existir, o irredutível conflito entre ética e estética, ceticismo e fé, racionalidade e transcendência, o indivíduo e a impessoalidade do coletivo”.

O autor de tantos filmes e documentários memoráveis concluiu sua pensata sobre Reichmann/Kierkegaard (seu igual-desigual europeu) sofismando que “como numa gangorra, Reichmann também comprazia-se entre pessimismo e melancolia corrosivos, mas que acabaram por tornar longevas sua vida e obra, inesgotável manancial de atualizadas indagações”.

Por tudo isso, não há o que discutir, “o Brasil urge reverenciar o gaúcho-paranaense Ernani Reichmann, outorgando sobrevida ao seu engenho e à consciência mítica e crítica protagonizada por ele”

ivan schmidtClica!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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