Arthur, mas pode me chamar de Fluminense Moreira Lima – I

Chegou o momento em que o Constantino Viaro não aguentou mais a pressão dos maestros Bochino e Colarusso sobre as condições do piano da Orquestra Sinfônica do Paraná. Diziam que o instrumento vivia no conserto, que voltava pior do que ia e que era velho de marré marré. Afirmavam, com grande convicção, que o piano era do tempo do Bento Mossurunga.

Viaro, tomado de brios, perguntou aos maestros qual era o melhor piano do mundo. Já que era para comprar outro, que fosse o mais perfeito. Os maestros, em uníssono, responderam que o melhor de todos era o Steinway. O Bochino ainda disse que era fabricado em Nova Iorque e em Hamburgo, mas que os artesãos alemães eram melhores que os americanos.

O Viaro foi à luta. Ligou para a diretora do Instituto Goethe em Curitiba, que era uma alemã gente finíssima, cujo nome lamentavelmente me escapa. Explicou a situação, não deu nem 15 minutos e a germânica estava lá no Guaíra para traduzir um texto a ser encaminhado, via telex, à Steinway & Sons, em Hamburgo.

A diretora do Goethe ainda não tinha terminado o café quando explodiu no telex do Guaíra a resposta dos filhos do senhor Steinway. Afinal, não era todo dia que vendiam um piano. Em suma: o mais novo modelo, cujos exemplares eram, até então, dois em todo o mundo, demorava três meses para ser entregue. Preço: 500.000 marcos (ainda não existia o euro). Como se tratava de um teatro estatal, davam um desconto de 50%. Para os alemães, um teatro estatal é uma instituição respeitabilíssima. Tem mais prestígio que a seleção alemã, mesmo depois dos 7×1. Consideram que a cidade que tem um teatro estatal atingiu o mais alto grau de civilização. Sabem nada esses tedescos… Exigiam o pagamento à vista, caso contrário não entregavam. Disseram que estavam cansados de levar calote de países latino-americanos.

Mesmo com o generoso desconto, era dinheiro que não acabava mais. O Viaro, junto com o pessoal do marketing do Guaíra, escolheu as dez maiores empresas privadas do Paraná e, com base na Lei Sarney, antecessora da Rouanet, foi à caça dos marcos. O primeiro a comparecer foi o Bamerindus, em bem fornido cheque assinado pela Maria Christina de Andrade Vieira, que era responsável pela área cultural do banco fundado por seu pai. Além disso o Bamerindus, via agência de Nova Iorque, faria o dinheiro chegar em Hamburgo, sem a cobrança de qualquer taxa ou comissão.

As outras empresas foram vindo. O único que se negou a comparecer foi o maior empreiteiro do sul do mundo. Mandou dizer, pela secretária, que era muito dinheiro por um piano, que comprassem um Essenfelder. Morderia a língua, como se verá adiante.

Com a ausência do empreiteiro, faltavam os dez por cento. O René Dotti conseguiu com o Hauly, que era secretário da Fazenda, uma suplementação orçamentária para o Guaíra. Mandaram o projeto, em regime de urgência, para a Assembleia. O Aníbal resolveu empacar. Disse que só colocava o projeto em votação se comprassem um Essenfelder, afinal que negócio era esse de não prestigiar a indústria local?! Viaro, tomado de fúria, mandou a secretária dele ligar para a secretária do empreiteiro e exigir o Essenfelder. No outro dia, entregaram um cheque nominal para F. Essenfelder Ltda. O Aníbal colocou o projeto em votação, foi aprovado, e mandaram o dinheiro para Hamburgo. O piano local ficou na orquestra, esperando o primo alemão; depois, foi para o Corpo de Baile.

Antes dos três meses previstos, o piano foi despachado pela Lufthansa e no Galeão fizeram o transbordo para a Varig. O melhor piano do mundo chegou a Curitiba. Para o concerto de estreia, convidaram o Miguel Proença, o maior especialista no mundo em Villa-Lobos, gaúcho de Quaraí, que faz divisa com Artigas no Uruguai, mas com tanto tempo de Rio de Janeiro, que se não fosse o forte sotaque fronteiriço, todo mundo juraria que se tratava de um carioca da gema. Gente da melhor qualidade.

O concerto, por causa do piano alemão, foi noticiado nos jornais do centro do país. Arthur Moreira Lima ficou sabendo da novidade e telefonou para o Bochino. Quinze dias depois, tinha uma apresentação beneficente em Foz do Iguaçu e clamou por tocar o Steinway antes ou depois da viagem a Foz. Perguntado sobre qual o valor do cachê, respondeu que pagassem o que quisessem, o prazer de encarar um Steinway, quase zero quilômetro, não tinha preço. Marcaram o concerto com o Arthur.

Moreira Lima desceu em Curitiba e foi, sem nem mesmo passar pelo hotel, ao Guaíra. Sentou na banqueta e executou um prelúdio de Chopin. Não contente, tocou outro. Após, deu o veredito: “É o melhor piano que já toquei na vida, mas o Proença ficou com preguiça de amaciar o bicho. A que horas abre o teatro?” Disseram que, pela entrada da Amintas de Barros, o teatro não fechava. Arthur disse que chegava no outro dia às seis da manhã.

Antes da cinco da matina, porém, Moreira Lima já estava no palco no Guairão. Tocou até às duas da tarde sem parar e foi almoçar. As três, com a orquestra toda postada, Moreira Lima e Bochino começaram o ensaio que foi até às seis horas. Arthur foi pro hotel, tomou banho, fez a barba, vestiu o fraque e as outras peças do vestuário e às sete da noite estava de novo no palco. Tocou sozinho até as 20:30 e, rigorosamente às 21:00, começou a apresentação. A cada peça executada, a plateia gritava Bravo! Bravo!. Terminado o concerto, o público, de pé, aplaudia cada vez mais. Moreira Lima voltou outras três vezes ao palco.

No outro dia, eu ia a Foz do Iguaçu. Entrando no Afonso Penna (ainda era o velho terminal), vislumbrei o Moreira Lima sentado. Cheguei junto dele, me identifiquei, e ele, simpaticíssimo, me convidou para um café. Depois, passamos na banca de revistas, onde ele comprou a Manchete, a Veja e a Isto É. A caixa perguntou se ele era artista. Disse que o tinha visto na televisão. Ele respondeu que sim, desde os 8 anos de idade. A moça perguntou qual novela ela tinha feito. Deu risada e disse que não fazia novela, era pianista.

O avião, da Vasp, vinha de São Paulo e estava repleto de japoneses. A aeromoça nos disse que o voo tinha lugar marcado, mas os nipônicos, todos, haviam trocado de lugar. Que escolhêssemos os lugares livremente. Fomos pro fundo do avião e o Arthur Moreira Lima passou a contar várias histórias.

Disse que começou profissionalmente aos 8 anos de idade, tocando Mozart com a Orquestra Sinfônica Brasileira. Depois, já maior, conquistou a medalha de prata no Frédéric Chopin, em Varsóvia. Em 1970, foi disputar o Tchaikovsky em Moscou. Quando do anúncio do resultado, a plateia vaiou estrepitosamente Os russos, aqueles comunistas safados, tinham roubado o concurso e deram os dois primeiros prêmios pruns manetas locais. A plateia não se conformava com a Medalha de Bronze ao Arthur Moreira Lima. Vaiavam que vaiavam e gritavam, em russo: “Maracutaia”. Até o Pravda, no dia seguinte, publicou uma notinha discreta, dizendo que o público que assistiu ao concurso protestou contra a colocação do brasileiro, achavam que ele merecia o primeiro lugar.

O Tchaikovsky era tão importante, mas tão importante, que a premiação era entregue no Kremlin. Leonid Brejnev, o ditador que havia derrubado o Nikita Kruschev, fazia questão de entregar o prêmio pessoalmente. O Brasil tinha reatado as relações diplomáticas com a União Soviética em 1961, coisa de João Goulart e Nikita. Convidaram, para a cerimônia o embaixador do Brasil. Vladimir Putin, jovenzinho, já agente da KGB, descobriu que o primeiro embaixador do Brasil na União Soviética, aposentado, estava passeando na Europa. Mandaram convidá-lo. O embaixador, que tinha sido o primeiro chanceler da ditadura, desceu em Moscou alegre e faceiro.

No grande dia, Brejnev, ao entregar a medalha ao Moreira Lima, colocou a mesma no peito da casaca, deu um abraço de urso siberiano e lhe tascou, segundo a moda russa, dois beijos no rosto. Fedia a vodka. O embaixador titular foi mais discreto e com um frouxo aperto de mão disse um parabéns. O ex-embaixador foi mais simpático. Antes do cumprimento, apresentou-se: “Muito prazer, embaixador Vasco Leitão da Cunha”. O Artur respondeu: “Muito prazer, Fluminense Moreira Lima”. Os brasileiros caíram na gargalhada. Brejnev mandou chamar o tradutor e exigiu entender a piada. O tradutor, coitado, tentava de todas as formas traduzir, mas Brejnev, quanto o cara mais traduzia, menos entendia. Arthur, que já tinha aprendido uns rudimentos de russo, lascou: “O embaixador do Brasil se chama CSKA Leitão da Cunha e eu, que me chamo Arthur, respondi, muito prazer, Spartak Moreira Lima”. Brejnev finalmente entendeu, não achou muita graça, riu discretamente, e o tradutor escapou de uma temporada na Sibéria.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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