As vergonhas da fome

“A fome de um único homem/no mundo/é a minha fome.” Os versos do a cada dia mais esquecido poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, me vêm à lembrança, ao saber, na semana, da uma estatística estarrecedora. Segundo a ONU, 1 bilhão é o número – aproximado – , de famintos a habitar a Terra, até o final deste 2009.

Como diz Anna Karina, em “Pierrot, le fou”, de Godard, (né mesmo, Almir Feijó?), ao ouvir no rádio do velho Peugeot, o número de vietcongs mortos na guerra do Vietnam: “Um absurdo que isso seja uma estatística!”. E ficam sendo, leitor, só isso: abstrações, frios números que nada falam da tragédia, individualizada, de uma pessoa.

Acho que os humanos de boa vontade não suportaríamos sequer imaginar o que há por trás de cada um dos anunciados 1 bilhão de seres; muitos, neste momento, a comerem as próprias fezes.

Ou como naquela foto histórica, acho que da Etiópia faminta, em que os urubus rondam a criança que agoniza, esquálida, num chão de lama. Sinto vergonha de mim, sinto vergonha de nós, frente àquele registro que é mais do que um soco na cara!

Não precisa ir longe: numa de minhas viagens ao Mato Grosso do Sul, num roteiro de conferências, vi, à margem de muitas estradas, índios guaranis a estenderem os braços esquálidos e as mãos enrugadas, pedindo em sua língua engrolada, um pedaço de pão. Ou um gole cachaça – para anestesiar a fome, a angústia, a desgraça. Maltrapilhos e alcoólatras, molambos, os guaranis.

Antes de nós, sabemos, imponentes guerreiros, caçadores de estirpe…

No Nordeste brasileiro dizem que a coisa é pior, com ou sem Bolsa Família. E isso, repito, leitor, mais do que indignação, a mim me provoca vergonha, a suja vergonha de atirar ao lixo pão amanhecido ou os restos do jantar de ontem. Não, não é a consciência culposa de um burguês enfastiado. Migrante do norte pioneiro, filho de lavradores, por pouco, ao menos o escriba que vos fala, não chegou a engrossar essas ou outras hórridas estatísticas.

Talvez um golpe de sorte tenha livrado a mim e à minha família de não formar junto à legião de famintos aqui mesmo no País insolúvel. E daí que o escândalo, da recém-divulgada estatística da ONU, me envergonhe, além, claro, da natural indignação que provoca mesmo no mais insensível dos mortais.

Há um outro poema que talvez explique tudo, melhor do que Brecht ou as estatísticas.

É de um poeta salvado da fome, o nigeriano Uzodinma Iweala, 27 anos, autor de um romance notável – Feras de Lugar Nenhum. Eu o conheci na Flip-2006. Anotei num velho caderno, o que me ditou, e traduzo livremente do inglês: “Ao surdo ronco do estômago/ a minha fome/ mais do que de alimento/é fome de amor”.

Precisa dizer mais?

19|07|2009

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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