Mural da História

Autores Domingos Pellegrini e Toninho Vaz são execrados pela família de Paulo Leminski. Família contesta questiona a fidelidade dele “à memória daquele que considerava amigo”.

Utilizando-se às vezes de artifícios da obra mais experimental do poeta Paulo Leminski, Catatau (1975), e estabelecendo um paralelo entre a própria história de vida e a de Leminski (além de recorrer a uma espécie de recurso “mediúnico”), o escritor Domingos Pellegrini gestou um livro que, embora não deixe de ser uma biografia, vai além do gênero. É como se fosse uma transbiografia.

Minhas Lembranças de Leminski chega às livrarias 25 anos após a morte de Leminski, num momento em que a obra do artista atinge impressionante celebridade – 200 mil visitantes viram a mostra Múltiplo Leminski, em Curitiba; a exposição Ocupações Paulo Leminski do Itaú Cultural (2009), com curadoria de Ademir Assunção, foi um dos destaques culturais daquele ano; e o volume Toda Poesia (Companhia das Letras) chegou a bater best-sellers importados, como 50 Tons de Cinza.

Nos anos 1980, havia um grafite famoso no muro da Universidade Federal do Paraná: “Pau no Leminski!”. A inscrição é bastante atual hoje: o livro de Pellegrini chega num cenário em que um cruel paradoxo se desenha: apesar de toda a badalação, para se escrever sobre Leminski, um libertário, os autores encontram um paredão de censura prévia, exercida pela família.

Pellegrini (de Londrina, cidade cujos cidadãos natos costumavam ser chamados de Pés Vermelhos) desfrutou da amizade de Leminski (de Curitiba, de origem polonesa, ou polaco), a partir do início dos anos 1970. Morou com ele em São Paulo, durante investida de Leminski para conquistar o mundo pop, tempo em que tomavam quatro garrafas de vodca dupla e depois o poeta mascava bala de hortelã, “por via das dúvidas”.

Além do senso de humor, a iconoclastia militante, a profunda erudição sem vaidade e as aparentes contradições bem resolvidas, o próprio processo de produção poético de Leminski é analisado pelo amigo, que confessa não partilhar de certos gostos do autor – como, por exemplo, a admiração pelo concretismo.

Pellegrini divide Leminski em dois: um pop, com uma estratégia de divulgação pessoal calcada na poesia acessível e numa mitologia pessoal, e o intelectual, contido especialmente em sua obra em prosa, como os Ensaios Crípticos e o Catatau.

A saga alcoólica de Leminski, o Polaco, aparece com grande impacto no livro de Pellegrini, o Pé Vermelho. “E, finalmente, o último golpe líquido que me liquidou foi a hemorragia esofágica. É tanto sangue que sai da boca em jorro. (…) Vi, sim, o jorro vermelho ir bater lá na parede, tanto sangue que deixava claro não ter importância saber se era venal ou arterial, claro era tanto que tanto que faria falta fatal.”

O autor tentou submeter seu trabalho à família de Leminski, mas houve objeções para que tivesse o trabalho publicado. Ele não aceitou e publicou assim mesmo – inicialmente, dispôs o livro na internet. Pellegrini diz que não teme submeter o caso à Justiça, pois crê que “todo juiz verá que é um livro fraterno, digno e criativamente coerente com Leminski”.

Pellegrini vai ao confronto aberto: publica no final do livro a correspondência trocada com a poeta Alice Ruiz, viúva de Leminski. Ela questiona a fidelidade dele à memória daquele que considerava amigo.

“A ênfase no álcool, sua leitura de uma ‘precariedade’ de bens em nossa casa (você nunca ouviu falar em contracultura?), as observações exageradas sobre ‘falta de banho’, que corresponde a um período dos maiores excessos, mas que foi superada, enfim, tudo isso serve para criar uma imagem bem negativa do Paulo em contraponto à sua, que aparece como o interlocutor por excelência e cheio das qualidades que supostamente ‘faltavam’ a ele”, escreve Alice.

Pellegrini responde que não se submeteria a fazer uma biografia “chapa-branca” (um conceito jornalístico aplicado a narrativas que bajulam o seu objeto de análise) do autor.

A saga de Pellegrini repete a do escritor Toninho Vaz, que publicou O Bandido Que Sabia Latim (Editora Record, 2001), que estava indo para a 4.ª edição quando foi interditado judicialmente pela família. “O livro está parado, aguardando a votação no Congresso para liberar-se da censura familiar. Continuo censurado, aguardando”, afirmou ontem Toninho Vaz, que entrou com uma ação questionando os motivos da família. A primeira audiência está marcada para este mês, no Fórum do Rio.

O problema foi que Toninho Vaz atualizou a sua biografia de Leminski. Ele incluiu o seguinte trecho, que foi considerado “sórdido” pela família e descrevia uma cena do cotidiano de Pedro Leminski, irmão do poeta. “(Carlos Augusto Oliveira, o Caco, era vizinho de quarto e um dos últimos amigos de Pedro. Ele afirma ter visto Pedro, dias antes, bastante descontrolado, consumindo uma mistura de álcool, água e limão; cigarro de todos os tipos e drogas injetáveis. Pedro frequentava as madrugadas da pracinha ao lado do cemitério municipal, onde agora existia uma pista adaptada para skatistas. É de Caco também a informação de que Pedro, nesses últimos dias, estava lendo o livro Elogio à Loucura, de Erasmo de Roterdã, numa tradução de Stephan Zweig).”

Minhas Lembranças de Leminski
Autor: Domingos Pellegrini

Editora: Geração Editorial (200 págs., R$ 34,90)

Maio, 2014 – O Estado de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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