“Bacurau”: era uma vez no nordeste

O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do 4.º Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 27.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema.

Dir-se-ia não ser estranha a figura do forasteiro na filmografia de Kleber Mendonça Filho. Forasteiros, a bem dizer, e sem ser alguém de passagem, já conhecemos os agentes de segurança d’O Som ao Redor (2013) ou os (igualmente agentes) imobiliários de Aquarius (2016). Elementos perturbadores que, vindos de súbito, sem que saibamos muito bem de onde e com que reais intenções, irrompiam sobre uma ordem estabelecida, colocando em causa um status quo comum a uma comunidade – a de uma rua, a de um prédio ou, agora, a de uma pequena cidade do interior do Brasil.

Em Bacurau (2019), cidade fictícia – e, como tal, verdadeiramente fora do mapa –, esta ideia do forasteiro é ainda mais potenciada por Mendonça Filho e Juliano Dornelles, seu colaborador de longa data que agora também assina a realização, através da aproximação que se faz sentir, de forma desvelada, a um género cinematográfico que tipicamente recorre a este conceito: o western. A pacata cidade que baptiza o filme (e que designa também um ave noctívaga), sita num “Oeste brasileiro” (enunciação curiosa que é, simultaneamente, definida e indefinida), vê a sua pacatez e tranquilidade perturbada pela chegada de dois viajantes aparentemente de passagem – brasileiros, sim, mas também outsiders: dizem ser do Sul do país e, conforme nos avisa uma vendedora à entrada de Bacurau, auguram mau presságio.

Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles transpõem essa ambiência a que usualmente associamos ao western para o Brasil e suas complexas idiossincrasias.

O casal de viajantes nacionais trabalha afinal, saberemos mais tarde, para um grupo de estrangeiros – e não será despropositado referir que este conjunto se compõe por americanos, alemães e italianos (nacionalidades com relativa presença no país graças a sucessivas vagas migratórias) – fazendo-o com o obscuro desígnio de cercar a cidade e levar a cabo uma chacina. O referido dispositivo transporta-nos, assumida e abertamente, para as premissas do western na história do cinema, em que os cercados são impelidos a defenderem-se por si próprios e, não raras vezes, com o auxílio de outlaws aceites pela comunidade, mas não pelo poder institucional. Em Bacurau, será Lunga que assumirá esse papel com especial graça e impacto.

Ecoa no filme o signo de Howard Hawks e de Sergio Leone, presenças que remetem para uma forma de tratar um género e as suas declinações, mas o maior eco deste filme será porventura John Carpenter na sua variação do western que, a bem dizer, enquadrou na contemporaneidade, nesse extraordinário filme ao qual se deu o nome de Assault on Precinct 13 (Assalto à 13.ª Esquadra, 1976).

Não descurando, a bem dizer, tais signos e fantasmas, Mendonça Filho e Dornelles transpõem essa ambiência a que usualmente associamos ao western para o Brasil e suas complexas idiossincrasias. Aliás, para um Brasil, como se disse, do futuro, mas bem poderia ser o Brasil de hoje – sintomático, porventura, da aparente irresolubilidade  dos problemas que desde o início consomem a sociedade brasileira na longa cronologia: a violência (que o filme incorpora com particular vividez), o jugo de uma população a um poder corrupto, a dicotomia entre regiões do país, mas também o Brasil na sua relação com o exterior, com o “primeiro mundo”.

Se é verdade que a dupla de cineastas pernambucanos namoram o género do western, a verdade é que também dele se afastará (como aliás o já fazia Carpenter), ainda que aceitando determinadas codificações que são caras ao aludido género. Rejeita, todavia, o pastiche: basta pensar na própria paisagem brasileira, que é contrastante daquela a que nos habituamos a ver no dito género (embora igualmente impactante), mas também a desvelada incorporação da dimensão do místico, do popular, e até mesmo do onírico a que estas terras propiciam.

Feitas as contas, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem entoar nesta elegia a uma cidade interior (e que podia ser qualquer outra cidade), um sentimento de esperança de que as coisas podem mudar, como nos demonstrou a determinação dos habitantes de Bacurau no combate ao inimigo comum (pois sim – afinal não é um western, não, mas será afinal um filme militante…!)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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