Bandarilheiro

Foto revista Carta Capital

Ele tinha cara e corpo de toureiro. Ou então não de toureiro, que mata o touro. De bandarilheiro, que o irrita. Afinal, o Millor era só meio espanhol. O touro dele era qualquer coisa grande ou metida a grande, qualquer coisa com chifres que assustavam os outros mas não ele, qualquer coisa pomposa e ridícula, qualquer coisa prepotente. Mas acima de tudo, o touro dele era a burrice.

No lombo da burrice ele espetava suas bandarilhas coloridas, seus epigramas pontudos, suas parábolas incisivas, suas frases marcantes, sua inteligência afiada, esquivando-se dos chifres da besta. No fim ele só não conseguiu driblar a coisa mais burra que existe: a morte.

Especulação dolorosa: o que teria passado pelo seu cérebro nestes últimos dias, preso a um corpo inutilizado? Que memórias, que imagens ocuparam sua mente antes do fim? Ele na sua última arena, diante do seu último touro. Arena vazia, só os dois, num cara a cara final. Ele sem seus instrumentos: sem lápis, sem teclado, sem defesa. E na sua frente a burrice na sua forma definitiva.

A burrice total, a burrice imune a argumento ou súplica, a burrice irreversível, a burrice triunfante. Não adianta ele sugerir que ao menos dancem uma valsa, a burrice não tem senso de humor. Nem se pode chamá-la de vingativa — ela sabe que no fim, depois das bandarilhas coloridas e de todas as piruetas, a vitória será dela. Por mais ridicularizada que ela seja, a vitória é sempre dela. E depois vem a burrice eterna.

No seu sonho terminal, o touro começa sua carga. E o bandarilheiro não consegue sair do lugar.

Bozó e Coalhada

Cada um tinha seu personagem do Chico Anisio favorito. Os meus eram o Bozó e o Coalhada. O Chico era, antes de mais nada, um grande ator e cada personagem que ele criava vinha completo, não só com trejeitos e personalidades meticulosamente observados mas com biografia e destino claramente subentendidos.

Você adivinhava toda a vida do Bozó, sonhando eternamente com o status de ser da Globo, e do Coalhada, lembrando uma carreira no futebol que tinha pouco a ver com a realidade. Uma dentadura falsa bastava para fazer o tipo do Bozó, mas o Coalhada requeria um estrabismo meio desvairado que não podia ser simulado, era recurso do grande ator.

 Chega! Chico Anisio e Millor, um depois do outro. Ninguém está achando graça.

Luis Fernando Verissimo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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