Banguela

Passei anos cantando “o antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a baía da Guanabaaaaara, pareceu-lhe uma boca bangueeela”, acreditando que o francês era insensível às belezas da minha terra, mas desconfiada de que a citação de Caetano demonstrava a admiração do músico pelo estrangeiro.

Também enfrentei dois meses de acampamento no Parque Indígena do Xingu, durante as filmagens de “Kuarup”, certa de que a distribuição das majestosas ocas, dispostas em círculo ao redor da casa dos homens, não guardava segredo maior do que o de um condomínio com área de lazer capinada, em torno de um boteco de esquina central.

Por essas e outras, muitas outras, senti assombro e vergonha por ter lido “Tristes Trópicos” com tamanho atraso.

O extraordinário relato pessoal da travessia do planalto central em direção à floresta amazônica, feita na década de 1930 pelo antropólogo, tem a grandeza de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e o mistério de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.

Assim como Cunha, Lévi-Strauss descreve a relação entre a natureza e o homem com a precisão de um cientista e a subjetividade de um poeta. E tal e qual o professor Riobaldo, de Rosa, o pesquisador é tanto observador quanto objeto, terminando a jornada assolado por um profundo vazio existencial.

Caso tivesse levado “Tristes Trópicos” para o Xingu, eu teria entendido, “in loco”, que a formação circular da taba contém uma razão matemática que regula as relações de troca entre a tribo, uma lógica dualista muito superior ao que minha estupidez seria capaz de intuir.

E saberia que a divisão da roda em metades assegura que a distribuição das mulheres, sinônimo de sustento e filiação, se dê de forma equânime entre clãs opostos.

E entenderia que as restrições matrimoniais remetem à proibição do incesto, à fundação da sociedade humana e ao Santo Graal que separa natureza e cultura.

Se conhecesse “Tristes Trópicos” há mais tempo, eu teria compreendido o porquê de ansiarmos pelo novo que já nasce ruína, pela Barra da Tijuca e por Brasília.

E me veria nos primeiros alunos da USP, descritos como seres ávidos por se livrarem da herança rural, colonial, arcaica; mas que, sem terem como dar conta dos fundamentos passados, se veem atraídos por um conhecimento enciclopédico, de almanaque, adeptos das últimas tendências, mas ignorantes do caminho que as levou a existir.

Se tivesse conhecimento do livro, eu não me surpreenderia com a notícia de que a Amazônia foi povoada por 8 milhões de pessoas que dominavam a agricultura e o manejo da floresta; eu saberia que a complexidade social das Américas, que deu nos incas, maias e astecas, era fruto de uma cultura bem mais antiga do que admitia a soberba europeia.

Se eu conhecesse Lévi-Strauss quando estive na Índia e na Grécia, poderia imaginar o que seria do mundo se Alexandre tivesse feito uma aliança profícua com o Vale do Indo e entenderia que o Islã partiu o globo entre o Ocidente e o Oriente.

Mas eu não conhecia, não sabia, nem intuía.

Fernanda-torres

Fernanda Torres – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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