Boca no trombone

Mas o melhor instrumento para denúncias ainda são as palavras

Ouço com frequência no rádio e na TV que as pessoas estão botando a boca no trombone. As mulheres vítimas de assédio ou estupro estão botando a boca no trombone. Os praticantes das delações premiadas estão botando a boca no trombone. A imprensa está botando a boca no trombone. O povo está botando a boca no trombone.

Acho formidável tudo isto —aliás, levei a vida esperando que acontecesse—, mas não concordo com a imagem do trombone. Dá a entender que ele é um instrumento de alerta, feito para tocar alto e despertar os distraídos. Mas, embora seja um componente importante de desfiles militares, bailes de Carnaval e charangas de torcidas, o trombone não nasceu para fazer barulho.

Aprendi isto escutando o trombonista americano Tommy Dorsey. Seu megassucesso dos anos 30 e 40, o fox “I’m Getting Sentimental Over You”, de George Bassman e Ned Washington, tinha um longo solo de trombone. Dorsey o tocava com tanta suavidade que era como se não precisasse respirar. Aliás, era o que pensava o crooner de sua orquestra, o jovem Frank Sinatra. Esperando sua vez de cantar, Sinatra ficava sentado bem atrás de Dorsey enquanto este tocava de pé, na frente do palco. “Eu observava o paletó de Tommy, esperando que inflasse e desinflasse. Mas ele nem se mexia!”, disse Frank.

Os grandes trombonistas do jazz, como o clássico Jack Teagarden, o bebop J. J. Johnson, o West Coast Frank Rosolino e outros, eram delicados ao tocar. Melba Liston, trombonista das orquestras de Dizzy Gillespie e Quincy Jones, nem se fala —era mulher. O mesmo no Brasil, com Raul de Barros, Norato e Nelsinho. O próprio Raul de Souza, ás do samba-jazz, com toda a energia e velocidade que isto implica, está dizendo cada vez mais com menos notas.

Donde é besteira botar a boca no trombone. O melhor instrumento para as graves denúncias que foram e continuarão a ser feitas sempre serão as palavras.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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