Brasil, sala de roteiro

Vamos lá, vamos começar de novo: onde a gente pode esconder o Queiroz?

Roteirista-chefe: “Gente, por favor, vamos concentrar? É importante: a cena final do último episódio da penúltima temporada. Prisão do Queiroz: quem tava escondendo o cara esse tempo todo?”. Estagiário: “O advogado da família Bolsonaro!”. Roteirista-chefe: “Não, Enzo. Soa inverossímil. O advogado da família Bolsonaro nunca ia esconder a principal prova contra a família. A gente tá fazendo ‘House of Cards’, não ‘Detetives do Prédio Azul’!”. Roteirista 1: “Você disse a mesma coisa quando eu sugeri a cena do Joesley gravando o Temer de madrugada no estacionamento do palácio e foi dos episódios mais vistos daquela temporada”.

Roteirista-chefe: “Ibope não é sinônimo de qualidade! Vamos tentar ser mais criativos? Vamos mudar o foco. Em vez de quem escondeu o Queiroz: onde ele pode estar escondido? Num ferro-velho? Num barco abandonado nas docas? Num motel em Macapá?”. Roteirista 2: “Num sítio em Atibaia!”. Roteirista-chefe: “De novo? Suposto caso de corrupção do Lula: sítio em Atibaia. Suposto caso de corrupção do Bolsonaro: sítio em Atibaia! Até o Adriano da Nóbrega você queria mocozar num sítio em Atibaia!”. Roteirista 2: “É que eu tenho um sítio em Atibaia. Você sempre diz pra gente escrever sobre o que a gente conhece. E a produção ia gostar, já tem cenário pronto”.

Roteirista 1: “Sei lá, tava pensando aqui mais na cena da prisão, mesmo. Se não for bom, esquece, tá? Tô só jogando… Imaginei que a polícia entra aí nesse bunker que a gente não sabe onde é, aí tem um baita poster ‘AI-5’ bem em cima de uma lareira! Pá!”. Roteirista-chefe: “Sei. Como se o vilão tivesse um crachá no peito escrito ‘vilão!’? Que mais você quer? Uns bonequinhos de bandidos numa bancada? Tipo uns Tony Montana, do Scarface???”. Estagiário: “Eu curto uns bonequinhos do Scarface!”. Roteirista 2: “Não faz sentido o Queiroz ser fã do Tony Montana porque o Tony Montana é tráfico, o Queiroz é milícia. E o Tony Montana recebe os inimigos atirando e a gente quer que o Queiroz seja preso, né? Pra ter a prisão dos Bolsonaro na última temporada”.

Estagiário: “Ele pode receber a PF atirando. Morre. Aí a gente começa a próxima temporada mostrando que aquele na verdade era o irmão gêmeo do Queiroz”. Roteirista-chefe: “Pelo amor de Deus, gente! Isso aqui não é novela mexicana! Vamos fazer um negócio decente, coerente, fino?”.

Silêncio constrangedor. Roteirista-chefe: “Que foi?! Por que o climão?”. Roteirista 1: “Na boa. É que faz tempo que a gente perdeu o pé”. Roteirista 2. “Desde 2013 a série tá bem zoada.”. Roteirista 1: “Fazem até meme. Ah, Moro é herói, ah, moro é vilão, ah, Globo é fascista, ah, Globo é comunista! Ator pornô vira deputado. Cai presidente, sobe presidente…”.

Roteirista-chefe desaba e começa a chorar: “Eu sei! Eu sei! Não tem sido fácil. A Ana Sílvia me abandonou em junho de 2013. Vocês sabem do meu problema com álcool. Eu ia escrever, não sabia mais se as cenas de passeata eram de esquerda, de direita, troquei MPL por MBL… Misturava Cynar com Gardenal e escrevia aqueles discursos da Dilma. Toda a cena do impeachment eu escrevi cheiradaço. Depois entrei pro AA. A série ficou meio morna: temporada do governo Temer. Aí fui pro Daime e essa temporada do Bolsonaro eu escaletei inteira numa bad trip de ayahuasca. Mas não importa! Mesmo nos meus dias mais doidaraços eu jamais faria prenderem o Queiroz num sítio em Atibaia que pertence ao advogado dos Bolsonaro e que tem poster do AI-5 com bonequinho do Scarface. É um roteiro vagabundo demais. Vamos lá, vamos começar de novo: onde a gente pode esconder o Queiroz?”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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