Cacá|Luis Fernando Verissimo

Sou Salgueiro, mas duvido que se ouvirá um samba-enredo melhor do que o da Mangueira no desfile das escolas do Rio no ano que vem. O samba faz homenagem a Marielle Franco, vítima por duas vezes, das balas dos assassinos e do descaso das autoridades em identificá-los. Dizem que o que está dificultando a investigação é que todo mundo sabe quem foram os atiradores e quem são os mandantes, a questão agora é decidir se vale a pena denunciá-los ou se é melhor deixar tudo, brasileiramente, pra lá — “lá” sendo aquele lugar em que nossos crimes e nossas culpas vão para serem convenientemente esquecidos.

O samba da Marielle homenageia a Marielle, mas também fala sobre um Brasil desejado, “o Brasil que não está no retrato”, que não é o falso Brasil da História ensinada nas escolas. Agora, querem que a História oficial seja única e sem contestação. Boa parte da nossa História oficial é mentirosa, ou apenas uma versão entre outras versões possíveis do que realmente aconteceu. Contestá-la não é fazer doutrinação ideológica, é uma maneira de formar, não pequenos comunistas, mas alunos capazes de aceitar a diversidade e as razões por trás do que aparenta ser apenas histórias de triunfos e heróis.

Ouvi o samba da Mangueira na internet, cantado pela turma de compositores da escola com uma participação importante, a da Cacá (guarde este nome) Nascimento, uma menina que não deve ter mais do que 12 anos, com uma bela voz e uma bela cara. Quero agradecer a Cacá. Às vezes, quando a gente está por baixo, pensando o pior da humanidade, alguma coisa vem e nos salva. Você recupera a esperança, o apetite e o prumo existencial, seja isso o que for. Aconteceu comigo vendo o sorriso aberto da Cacá cantando Marielle. O rosto da Cacá apaga tudo de ruim deste momento nacional. É o rosto da nossa reação. Lidere-nos, Cacá.

Letra do Samba-Enredo 2019
História Pra Ninar Gente Grande
Autor: Deivid Domênico e Cia

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde- e- rosa as multidões

O biotipo dessa menina lembra muito a própria Marielle, não é? Imagina ela na Sapucaí ano que vem!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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