Cancelada

Mas fui salva pelo Jesus gay da Porta dos Fundos

Apenas recentemente entendi (e agora na própria pele) o que significa ser cancelada. As redes sociais vieram abaixo quando falei mal do presidente no programa Roda Viva, e me xingaram tanto, mas tanto, que eu fiquei por alguns minutos entre os assuntos mais comentados do Twitter.

Preciso confessar que foi uma honra ser defenestrada pelo gado do energúmeno de berrante. Ser cancelada pela direita (ainda mais a extrema) é sinal de que, ao lado de pessoas e leituras melhores, não sou mais fruto do meio preconceituoso e limitado no qual me criei e, por algum tempo, prosperei.

Olha, lá pelos 20 anos, eu fazia comentários do tipo “índio com Nike?” e “só tinha gente feia!”, que hoje me causam ânsia só de pensar que são proferidos por alguém. Nunca fui má pessoa e tampouco hoje sou “do bem”.

Eu era apenas uma idiota que lia os textos errados (anuário de propaganda?), fazia uma faculdade besta (marketing?) e trabalhava em uma empresa cheia de babacas (sobre isso já falei em infinitas colunas).

Tudo é uma questão de educação e ambiente social —não à toa o seu Jair quer tanto desmontar as universidades e a cultura.

Se eu soubesse o que a psicanálise faria por mim, teria entrado nesse universo assim que terminei o colégio.

Não existe nada mais importante para o desenvolvimento pessoal do que fazer muita terapia e estudar muita psicanálise. Nada. Confie em mim: nada. Junto com Freud vieram livros de filosofia, ciências sociais, clássicos da literatura e, o melhor de tudo, uma sensação extremamente prazerosa de ter um lugar no mundo. Escrever já tinha me dado esse lugar, mas a psicanálise me possibilitou habitá-lo sem tanta culpa, medo e ansiedade.

E pensar que não faz nem três anos eu ficava aqui arrumando encrenca com gente maravilhosa, debatendo infinitamente o que considerava serem os exageros chatolas de uma esquerda sem contas para pagar. Parei.

Com um governo desses, bicho, eu estou mais é querendo abraçar qualquer militante defensor da ioga obrigatória para animais de estimação cardíacos.

Se alguém aparecer aqui na minha casa, agora, dizendo que eu não tenho nenhum respeito pelas pessoas sem apêndice porque faço selfies contendo, ainda que secretamente, o meu próprio apêndice, periga eu convidar esse ser de luz para a festa da minha filha (mentira). É nisso que dá ter um presidente tão ruim!

Não consigo mais ser cínica com as fotos de placenta. Não posso mais achar tola uma intelectual de Higienópolis reclamando de fiu-fiu na rua e achando que isso a aproxima, enquanto minoria, da faxineira encoxada no ônihttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/tatibernardi/2019/12/cancelada.shtmlbus.

Se uma garota de família milionária me disser que o capitalismo massacra a sua alma e por isso ela se recusa a trabalhar, talvez eu chore e a abrace. Há esquisitices bem mais sérias e graves a serem debatidas.

Mas voltando ao assunto de ser cancelada: será que os defensores do Bolsonaro têm capacidade de cancelar alguém com argumentos tadinhos como “jornalistinha merda da Folha” e “deixando de seguir em 3, 2, 1”?

Na verdade, o ônibus virtual fretado para uma balada conservadora tentou me atropelar, mas fui salva pelo Jesus gay do Porta dos Fundos. Contudo, gostaria eu mesma de me cancelar. Ficar em silêncio olhando o mar e esquecendo esse ano estranhíssimo.

Desde que comprei uma agendinha 2020, algo aconteceu entre o alinhamento do meu espírito e o cosmos. Por favor, me cancelem para encontros, eventos, opiniões e trabalhos. Eu já não estou mais neste ano.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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