Divagações sobre fantasia e realidade no poeta que amava transformar carvão em diamante

© Rafael Sica

Desde que escrevi a biografia de Paulo Leminski, há exatos dez anos, recebi várias críticas (especializadas) e opiniões de leitores que são lidas e arquivadas como parte integrante do trabalho. O livro, chamado O bandido que sabia latim, já está esgotando a 3ª. edição e seu gráfico de venda, nunca interrompido, permanece estável, ou seja, com o vetor apontado levemente para cima. É o interesse dos jovens leitores pelo poeta do Pilarzinho que revitaliza a procura por aquilo que já foi definido como “a linha que nunca termina”. A obra de Paulo Leminski, além dos poemas de estalo tão ao gosto das massas leitoras de poesia (o gueto dos guetos), ainda guarda indicações e estudos que não foram inteiramente decodificados.

Talvez tão interessante quanto uma “obra” de Leminski, seja a justificativa que ele dava à criação desta obra. Um exemplo clássico é o seu romance-objeto, que durante algum tempo foi chamado de Descartes com lentes (enquanto ainda era um conto) e, mais tarde, Zagadka, que significa enigma em russo-polonês. O nome definitivo surgiu na temporada carioca, quando os moradores do Solar da Fossa, a legendária pensão da contracultura, o saudavam em voz alta pelos corredores: “Lá vem o Leminski com aquele catatau embaixo do braço”. Ele mudou o nome do livro para Catatau.

Na condição de amigo e biógrafo, sempre lamentei não estar perto do poeta quando ele concebeu e encaminhou o ensaio Metaformose, no final da vida, quase em êxtase, como um monólito misterioso e, paradoxalmente, revelador. (Nesta época, nossos encontros se tornaram raros, eu morando no Rio e ele entre São Paulo e Curitiba.) Para quem tinha começado a vida intelectual ainda menino em escolas religiosas, estudando e se aprofundando em clássicos do pensamento greco-romano, nada mais razoável que conceber como desfecho de vida “uma viagem pelo imaginário grego”, como ele mesmo definiu seu interesse por Ovídio e a mitologia. Claro, sempre subvertendo e avançando na estética de uma narrativa poética ao nível da erudição, pois não devemos confundir o seu trabalho com o Metamorfose, o clássico. Leminski tinha como meta a forma.

Certa vez, quando cheguei à casa do poeta para uma visita rotineira na Cruz do Pilarzinho, ele falou das tentativas para encontrar, no mapa da Polônia, a pequena cidade de Narájow, supostamente o berço original do clã Leminski. Nada encontrou.  Já tinha desistido quando percebeu uma mosca pousar no mapa. Não titubeou. Levantou-se com uma caneta na mão e fez um circulo no local exato onde a mosca esfregava as patinhas. Ali ficava Narájow. Em seguida concebeu o poema:

uma mosca pouse no mapa
e me pouse em Narájow
a aldeio de donde veio
o pai do meu pai,
o que veio fazer América,
o que veio fazer o contrário,
a Polônia na memória,
o Atlântico na frente,
o Vístula na veia
(…)

Outra vez, durante uma conversa informal na casa da Cruz do Pilarzinho, nos anos 70, ele perguntou amavelmente pela minha namorada, senhorita S., mas se surpreendeu com a minha resposta:

– Está tudo bem, Paulo. Mas hoje ela está com uma namorada… Sim, estou convivendo com esta situação.

Ele reagiu com um sorriso malicioso para, em seguida, repetir uma atitude que lhe era característica ao levantar-se das almofadas aos berros e desaparecer pelo interior da casa:

“Alice, Alice, o futuro chegou!! O Martins tem uma namorada que tem uma namorada!”

Alguns dias depois esta frase (conceito) fazia parte da narrativa do romance em processo Agora é que são elas, usada, obviamente, no contexto da trama.

Outra vez, ao se debruçar sobre uma cena de natureza morta, onde uma cigarra era devorada por dezenas de minúsculas formigas, ele procurou um papel e uma caneta e, em poucos minutos, registrou o poema:

acabou a farra
formigas mascam
restos da cigarra

Parece claro que um dos pontos fascinantes da poesia de Paulo Leminski, junto à consciência do leitor ávido de autenticidade, vem desta observância do cotidiano, da correspondência com a realidade e, por fim, da iniciativa salutar (do ponto de vista da poesia), de promover o reverso, ou seja, a insurreição da fantasia. Como neste poema cheio de revolta (no caso, das palavras):

nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
hasta la vista
queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho:
– cala a boca
e pro relógio
– abaixo os ponteiros

Toninho (Martins) Vaz  – Publicado no jornal Cândido, editado pela Biblioteca Pública do Paraná)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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