Carta ao Pai… à mãe e ao filho

Três livros, um clássico e dois recentes, abordam as relações dentro do núcleo familiar

Um livro puxa o outro. Três livros espetaculares (um clássico e duas obras recentes), guardados em minha memória como dos mais belos socos no estômago. Todos com menos de 200 páginas, que é para o leitor mais atribulado ou preguiçoso não ter nenhuma desculpa.

Um relato autobiográfico brilhante sobre um pai extremamente severo e pouco carinhoso; uma ficção da vencedora do Pulitzer sobre uma relação impossível, distante e, naquele momento, confinada a um quarto de hospital; e, por último, uma autoficção (essa é a minha aposta, já que nunca saberemos o que tem de verdade em um livro e é sempre uma ideia idiota perguntar isso a um escritor) sobre um pai desesperado em encontrar, de todas as formas possíveis, seu filho adotivo.

Em “Carta ao Pai”, Franz Kafka relembra como era difícil estar ao lado de um verdadeiro homem: “[…] na força, na saúde, no apetite, na potência da voz, no dom de falar, na autossatisfação, na superioridade diante do mundo, na perseverança, na presença de espírito, no conhecimento dos homens, em certa generosidade”.

Em “Pretérito Imperfeito”, de Bernardo Kucinski, o pai adotivo, exaurido, escreve à mão para o filho (“cada palavra sopesada”) uma carta sem remetente “para não ser respondida”. Na primeira página do livro, em um dos começos mais pungentes da literatura confessional, o autor escreve: “Cansado de me alarmar a cada tinir do telefone, cansado de reaver esperanças para em seguida perdê-las, optei por perder de vez a ele, ainda que filho único”.

Ainda sobre a carta que manda para o filho:

“Minha carta é uma rejeição amena, como a dos japoneses que põem uma mochila às costas do filho imprestável e, sem intento de punir, ordenam que corra o mundo […] Tampouco o expulsei propriamente da casa. Ele se encontrava distante havia mais de dez anos, do outro lado do oceano. Partira, isso sim, às carreiras, na esperança de que em outras terras abandonaria a busca insana de um paraíso artificial. Não se tratava de excluí-lo do convívio, e sim de dentro de mim. Só o consegui racionalizando. Daí a ideia da carta. Destituí-lo de meus afetos por escrito, sem vociferar, argumentando. Carta solene. Uma epístola. Disse a ele que nunca lhe impingimos um futuro, como fazem certos pais, embora de nossas palavras e gestos possa ter inferido esse ou aquele caminho, como é inevitável na infância. Desejávamos apenas que possuísse qualidades. Não pequenas virtudes próprias do temperamento, como prudência ou modéstia, ou atributos inatos, como inteligência ou destreza, e sim valores que têm a ver com consciência e vontade, próprios do homem e apenas dele. Valores morais que ajudam a distinguir o correto do errado em cada circunstância e a agir conforme. Enfim, que fosse um homem de caráter. […] A carta é uma alforria que tardava. A minha alforria.”

Anos depois, tomada a devida distância para que essa intensa e castigada relação virasse apenas carinho e consideração, o pai, junto da mãe, visita o filho.

“Na nossa frente, ficou só de cuecas e se trocou, sem nenhum constrangimento. Foi um momento interessante, porque a ausência de pudor expressava sua condição de nosso filho, da criança a quem déramos banho e que pegávamos no colo. Vi então que estava mais magro do que sempre fora. Um corpo enxuto de mestiço de negro. Mas sem nenhuma reserva muscular ou de gordura. Senti muita pena e vontade de ajudar.”

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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