Cartas do Bunker 8: cumplicidade enluarada

Eles nem suspeitam, mas fazem companhia um ao outro num pacto silencioso, discreto e aconchegante. Emanam para o universo um bem-querer sem endereço fixo, de um abraço à distância, que vem lá de dentro e encontra lastro nos valores e sentimentos que consideram essenciais à humanidade. Na quietude dos seus pensamentos, ocupados pelas atribulações cotidianas e pelos próprios empreendimentos, rola uma cumplicidade curiosa e suave, quase com intuito de pertencimento. Beirando ao atrevimento!

Cada um emerge das suas tarefas, jeitos, ideais, projeções e questionamentos diante da vida que traçaram e das escolhas que fizeram para se conectarem por alguns segundos com a cena que se descortina do lado de fora. Há um certo conforto na certeza de que ela continua ali, intacta, próxima, mágica e íntima. E outro certo desconforto no receio de que ela fuja do alcance da vista e se desfaça simplesmente no amanhecer de quando tudo voltar a ser como era antes, como deve e precisa voltar a ser de novo.

De repente, o céu se veste de tons que mesclam todas as cores para ressaltar o rosa, o violeta e o alaranjado, entremeando-se às nuvens que escurecem, mas continuam se insinuando no fundo da tela, coroando aquela parceria distraída. A mensagem artisticamente desenhada por capricho da natureza ao mesmo tempo em que promove esse prazeroso escapismo da realidade, destaca e joga um foco de luz sobre a teimosa e resistente manifestação de vida e de beleza à revelia dos dias atuais. Parece recitar um hino de esperança: sobrevivam e espalhem esse apreço!

Uma música, uma voz, um som estridente de um alarme de carro que dispara a todo instante atravessa o espaço da cena, sem quebrar seu encanto… E mais um dia se despede nessa rotineira alternância de afazeres, dúvidas e sossegos. Sempre decorado pelo refúgio desse pacto estabelecido inconsciente, persistente e previsivelmente pelas circunstâncias de um encontro desapercebido.

A tal da quarentena se apresenta como uma fonte constante de descobertas. Marcada pela criatividade nossa de cada dia em acomodar velhas e amarrotadas situações nesta nova realidade. Quando ela acabar, a gente vai ter até se acostumado e pode vir a sentir-se aleijado de pessoas e coisas que antes não estariam à nossa volta. Não caberiam no piloto-automático da nossa sobrevida antes dessa pandemia nos tomar de assombro. Mas é só também.

A lua sobre os dois é a mesma, única e brilhante, a refletir, abençoar e a projetar seu magnetismo sobre aquelas cabeças, aqueles mundos particulares. Não sei dizer se o universo conspira pelos dois, mas lhes deu esse banho de luz para resplandecer aquilo que eles não sabem definir e que sequer conseguem formular questões na busca por decifrá-lo. Tudo isso é incerto, mas tudo tem a ver com os mais antigos desejos da humanidade quando fervilham no coração de um homem ou martelam e ressoam na razão de uma mulher.

                                 Ah! Bruta flor do querer                               
Ah! Bruta flor, bruta flor

(O Quereres – Caetano Veloso)

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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