Carteira cheia, carteira vazia

Fui criado, como diz Gil Brother Away, a leite com pera. Toda segunda-feira meus pais me davam cinquenta reais -uma pequena fortuna para um adolescente do ano dois mil. Conseguia a proeza de gastar tudo com balas Garoto, milk-shakes do Bob’s e o aluguel de fitas de Nintendo 64 (em geral a mesma fita: “007 contra GoldenEye”). No domingo eu estava invariavelmente quebrado. E nunca fiquei em casa porque não tinha dinheiro.

Ir à praia sem um centavo no bolso é um esporte, e eu era craque da camisa número 9. O primeiro desafio era o ônibus. Eram muitas as formas de não pagar. Lembro de duas. A primeira consistia em curvar-se humildemente, com olhar de súplica e voz chorosa, usando termos que denotassem afeto (“irmão”) e polidez (“na moral”): “Irmão, na moral, tem que condição de me quebrar essa, na humildade, só dessa vez, na moral, irmão? Fui assaltado, irmão, quebra essa pra mim, na moral”.

A segunda opção era mais trabalhosa, mas quase infalível: consistia em perguntar ao trocador se o ônibus passava por um bairro pelo qual ele certamente não passaria. “Passa no Grajaú?” “Não”. “Obrigado, vou descer no próximo ponto”. No ponto seguinte, a mesma coisa: “Passa no Grajaú?” Até chegar em Ipanema. Só falhou uma vez. Perguntei: “Passa no Grajaú?” E o trocador: “Passa”. Tive que responder: “Que pena, tô proibido de entrar no Grajaú”.

Chegando na praia, quase tudo era de graça: o mar, o sol, o pôr do sol, o futebol, a altinha. Na fome, filava-se um biscoito Globo, pedia-se um golinho de mate de galão, às vezes um amigo mais abastado emprestava dois reais e isso era suficiente para um banquete de queijo coalho. E a gente era feliz.

Para impedir arrastões, a polícia, sob o comando do secretário de segurança, está parando os ônibus que vão do subúrbio em direção à praia de Ipanema. Os passageiros que não têm dinheiro na carteira são detidos. Segundo o secretário, um jovem com a carteira vazia vai ter que assaltar pra voltar pra casa.

Secretário: existem mil maneiras de se viver sem dinheiro. Carteira vazia não é crime previsto por lei. Crime é pedir para alguém abrir a carteira com base na sua procedência ou cor de pele. Para se investigar alguém é preciso que pesem acusações sérias, como as que pesam, por exemplo, sobre os políticos para quem o senhor trabalha. Mas talvez no seu critério sejam todos inocentes, pois têm a carteira cheia.

gregorio duvivierGregorio Duvivier – Folha de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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