Célio Heitor Guimarães

doces-manhãs-de-páscoaQuando eu era criança na Lapa dos meus amores e na então habitável Araucária de meu avô Heitor, a Páscoa era a ocasião mais importante do ano, depois do Natal. Afora o significado religioso da data, que cultivávamos com o devido respeito que nos fora ensinado por nossos pais, tias e avós – não se comia carne durante a Semana Santa e, na Sexta-Feira chamada Maior, não se ouvia rádio (as emissoras apenas irradiavam música clássica), conversava-se baixo e nem assobiar se podia; algumas senhoras, mais pias, vestiam preto dos pés à cabeça o dia todo –, era uma ocasião mágica.

Hoje, sempre que a Páscoa se aproxima, lembro-me de uma deliciosa crônica da escritora e historiadora catarinense Urda Alice Klueger, incluída no precioso volume “No Tempo da Bolacha Maria” (Hemisfério Sul Editora, 2002). Segundo Urda, a Páscoa em Blumenau e arredores, na verdade, começava muitos meses antes do dito dia. Nas casas dos descendentes de alemães, poloneses e ucranianos, as mães passavam a quebrar os ovos de galinha com todo o cuidado, só a pontinha de cada ovo, armazenando as cascas vazias. Depois, cada casquinha era devidamente decorada, de formas diversas. Podiam ser pintadas com tinta a óleo ou guache, ou cobertas com papel de seda. A criançada, cheia de expectativa, ajudava a preparar o amendoim, que seria depositado nos ovos vazios. Como, naquele tempo, o amendoim era vendido com casca, era preciso descascá-lo, torrá-lo e tirar-lhe a pele para que as mães, tias ou avós confeitassem os grãos com calda de açúcar. Por fim, era preciso encher as casquinhas e fechá-las com estrelinhas de papel, coladas com cola de farinha de trigo.

Um parêntesis: acabo de ver no jornal da TV que, na cidade de Pomerode, vizinha de Blumenau, a tradição na Páscoa, repetida anualmente, é a decoração de galhos de árvores com cascas de ovos de galinhas devidamente decorados. O resultado é uma festa para os olhos e para o coração.

De volta à reminiscência: aqui ou em Blumenau de Ulda Alice, em todas as casas, nessa época, os olhinhos infantis acompanhavam os mínimos detalhes da confecção das cestinhas de papelão, caprichosamente enfeitadas com tiras multicoloridas de papel crepom cheias de franjas, forradas de papel picotado, palha ou capim. Cada criança ganhava uma. Já existiam cestinhas de vime, que eram usadas e reaproveitadas todos os anos, mas as favoritas dos menores eram mesmo as de papelão, encimadas por uma pequena alça do mesmo material.

Urda conta que, em Blumenau, fazia-se, também, os ovos cozidos pascais: colava-se folhinhas de avenca, de rosa, etc. (com clara de ovo) em ovos frescos, os quais eram amarrados dentro de pequenas trouxas de pano e depois cozidos em água com plantas que lhe davam cor. Após o cozimento, as trouxinhas e as folhas viravam belos ovos decorados, que eram servidos no café da manhã de Páscoa.

Não me recordo dessa tradição no Paraná, que talvez fosse apenas do belo Vale do Itajaí, mas me recordo – e como! – das manhãs de Páscoa. As cestinhas, que haviam desaparecido misteriosamente na véspera – o Coelho da Páscoa as teria levado para sua toca, diziam-nos os adultos –, reapareciam escondidas no jardim ou, às vezes, até mesmo dentro de casa.

Como relembra Urda Alice, “o despertar na manhã de Páscoa era uma loucura”. Corria-se para fora de casa ainda de camisola (ou pijama) à procura do que o Coelhinho havia deixado. As manhãs já frias de abril ajudavam a aumentar o friozinho de ansiedade de nossos estômagos e a visão das coloridas cestinhas, repletas de ovinhos, coelhinhos de chocolate e outras guloseimas, quase sempre entre os tufos de capim do jardim ou no alto de um galho de árvore, completavam o cenário de inesquecível magia.

Com minha mulher e meu filho então criança, passei várias Páscoas na Blumenau de Urda. Todas inesquecíveis. O cenário era propício e multiplicava o encanto da data. Infelizmente, hoje é outro. Foi atropelado pela modernidade e pela fúria de uma sociedade de consumo cada vez mais distante dos sonhos. O progresso matou o Coelhinho da Páscoa e poucos são os pais que ainda preparam cestinhas de papel encrespado para os filhos. Hoje – como também registra Urda Alice Klueger –, preferem levá-los às Lojas Americanas ou a um supermercado qualquer “para que elas próprias escolham a sua marca [de chocolate] preferida”.

E toda a magia da Páscoa se desfaz na caixa registradora. Blog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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