Cidade aflita

Quando crivaram de bala Mineirinho, bandido histórico, numa das favelas cariocas, em meados dos 70s, lembro da escritora Clarice Lispector (1925-1977) aturdida e, a seguir, mergulhada numa angústia sem tamanho. Dia desses, revendo, pela internet, uma das últimas entrevistas da autora de A hora da estrela, outra vez me comoveu a sua tristeza. E ali ela era ainda mais categórica, a indefectível língua presa, o seu maior charme: “Forram trreze tirros! Bastava um. O décimo-tercerro acerrtou em mim!”

Não foi diferente o que senti, na semana, ao saber, aqui mesmo no Estado, do brutal assassinato de um morador de rua, no Parolin. Dois tiros na cabeça e outro no rosto de “Toninho”. O do rosto para lhe desfigurar a face. Ele tinha só 19 anos.

E estava num ponto de ônibus, com outro deserdado de Deus – um menino de 12 . A cena é clássica: a multidão em volta, o corpo de barriga para cima, coberto por alguma alma caridosa, para que a morte, mesmo chué e ao rés do meio fio, não nos encha ainda mais deste viscoso horror com que toda morte, qualquer morte, nos faz, ainda outra vez, derrotados. E nos humilha a condição de vivos.

Alcoólatra, certamente viciado em crack, “Toninho” não portava documentos nem dinheiro, diz a crônica policial. Onde a mãe, o pai, a família? À margem de tudo e de todas as coisas, de nossas salas com TV de plasma e fofos sofás, ao “Toninho” a vida negou até mesmo o conforto que dedicamos a gatos e cachorros.

Bicho. Bicho das ruas, a comer as migalhas que caem das mesas fartas. Bicho face ao aparelho estatal. Bicho ante nossos vereadores, deputados e senadores. Bicho que a cidade foi mastigando aos poucos, até virar esse bagaço que a multidão rodeia, olha curiosa e um pouco desapontada. Bicho, o corpo coberto para que a morte não se revele assim tão acintosa.

Quem suportar há de?

“Toninho” mas poderia ser “Juca”, “Zé”, “Zezinho”. Bicho urbano. Bicho da metrópole indiferente às mazelas dos vivos, que dirá às de seus mortos anônimos… Mais um. Rala notícia num pedaço de jornal. Aí toda a sua biografia.

Onde a angústia de Clarice Lispector, lá atrás e lá longe, quando do assassinato de Mineirinho? Ela que tinha na Beleza Trágica o dom de sua vida de espantos é hoje apenas memória. E os seus livros geniais poderiam trazer na capa qualquer nome. Clarice Lispector não há mais.

Olho em torno, lembro tanta coisa. Lembro Curitiba da minha infância migrante, de pés no chão, a vila proletária da Saldanha Marinho; lembro do crime do Vossoroca. A cidade então parou porque mataram um motorista de táxi. Hoje roubam e matam às dezenas. Ninguém sabe, ninguém viu. Para que tanto desatino? Deus se pergunta. Mas nem Ele mais se responde.

 19|4|2009

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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