Cine Quanon

Sessão da meia-noite no Bacacheri

Uma mulher que vive num pequeno vilarejo da Rússia recebe de volta um pacote que ela enviou para o seu marido na prisão. Nervosa e confusa, a mulher inicia uma procura para entender o motivo de pacote não ter sido entregue. Krotkaya|Uma Criatura Gentil – França, Alemanha, Lituânia, Holanda, Letônia, 2017. Direção de Sergei Loznitsa, 142 min. Livremente inspirado no romance “Uma Criatura Dócil”, escrito por Fiódor Dostoiévski, em 1876.

Uma mulher contra a máquina

O que podem os estados totalitários? Baseado num conto homônimo de Fiódor Dostoiévski, Uma Criatura Gentil, de Sergei Loznitsa, traz para o ecrã a história de uma mulher que, na busca eterna pelo seu marido, preso pelo regime, se vê confrontada com múltiplos entraves ao longo dessa missão que, veremos, será impossível. Esta impossibilidade de uma mulher (e não de a mulher) rejeitada pela comunidade é apenas uma das questões levantadas pelo cineastaucraniano.

A história da arte (literatura, música, cinema e teatro, inclusive) é convocada, magistralmente, pelo realizador e atravessa a plasticidade do filme, começando, desde logo, pela livre adaptação literária. Faz-se sentir no fim de tarde apocalíptico e no cenário pantanal à la Andrei Tarkovsky, no quadro vivo de uma mulher em tarefas domésticas à luz da pintura flamenga, assim como nos cantos tradicionais soviéticos (mas também na ópera). A tragédia é pré-anunciada pela presença quase ininterrupta do coro – a maioria das personagens nem sequer tem nome –, revelada na sonorização fora de campo e nos planos sequência, de forma exemplar no comboio e na prisão.

Tal como em No Nevoeiro, a guerra, ou, aqui, a sua permanente possibilidade (fala-se em mísseis nucleares e nos EUA), assombra esta decrépita cidade-prisão, cujo mapa é um traçado de ideólogos comunistas e na qual a ideia de justiça parece não confrontar-se com o sentido de moralidade. “Porque foi para a prisão? Por nada. Porque foi condenado? Assassinato”. Losnitza dá a ver o aparelho estatal totalitário através dos indivíduos – cínicos, perversos, imbuídos na engrenagem – que cruzam a travessia desta mulher e lhe dificultam a missão, sem motivo aparente, em processos kafkianos.

Sugerindo, assim, que aquele só se cumpre totalmente na medida em que se instala numa dimensão íntima e quotidiana, indiciando, através de pequenas insinuações (por exemplo, um carro moderno em plano de fundo), uma analogia com a Rússia contemporânea.

Alexandra João Martins

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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