Fascinar-se, divertir-se, experimentar até o fim

Coletânea póstuma de Sacks nos permite viajar para jardins e na mente humana

Em tempos de isolamento como o que estamos vivendo, uma das maneiras de visitar jardins, museus, zoológicos e bibliotecas é ler essa coletânea póstuma de ensaios de Oliver Sacks, brilhante neurologista, professor, escritor (e apaixonado por química e biologia).

O primeiro texto do livro, “Filhotes da Água”, é uma recordação doce da infância do autor, no qual ele relata como começou seu vício pela natação, costume herdado do pai. Já em “Peixe de Filtro”, no final do volume, Sacks nos conta como um prato típico da culinária judaica, o gefilte fish (um bolinho de peixe), acompanhou suas preferências desde quando era criança até os momentos finais da sua vida (ele morreu de câncer em 2015, aos 82 anos).

Apesar da curiosidade obsessiva e pulsante do autor pela natureza que invade o nosso olhar quando saímos da cidade (e também sobre o que pode existir fora da Terra), confesso que tenho um interesse muito maior pelos ensaios em que podemos mergulhar com ele no cérebro humano.

No relato mais intrigante dessa obra, “As Virtudes Esquecidas do Asilo”, o neurologista faz um resumo da história dos antigos manicômios e reflete sobre os que funcionavam como espaços de tortura e os que de fato eram espaços vívidos, saudáveis e necessários para que doentes mentais pudessem se sentir úteis, acolhidos e protegidos. Nos anos 1950, “a disponibilidade desses remédios [drogas antipsicóticas específicas] reforçou a ideia de que a internação não precisava ser sob custódia nem vitalícia”. Contudo, “nenhuma cidade possuía uma rede adequada de clínicas psiquiátricas”.

Em “Por Que Precisamos de Jardins”, Sacks revela que, em décadas praticando a medicina, encontrou apenas “dois tipos de ‘terapia’ não farmacológica que têm importância vital para pacientes com doenças neurológicas crônicas: música e jardins”. Uma idosa com Parkinson sofria paralisias frequentes, mas, ao se ver em contato com a natureza, subia em pedras sem ajuda. Um idoso com demência não lembrava como amarrar os sapatos, mas sabia cuidar de um canteiro de flores. Um jovem com Tourette e “centenas de tiques e ejaculações verbais por dia”, ao caminhar pelo deserto tinha o comportamento de uma pessoa normal.

Como é sabido por quem acompanhou a produção do escritor, seus relatos clínicos se tornaram, muitas vezes, obras reconhecidas —“Tempo de Despertar”, por exemplo, virou filme em 1990 com Robert De Niro e Robin Williams. Apesar de o doutor proteger boa parte de seus pacientes com pseudônimos, não foram poucos os críticos de tamanha exposição. Talvez por isso, em “Loucura de Verão”, Sacks nos apresente Michael Greenberg, um pai que resolveu transformar em livro a história da filha que “enlouqueceu” (Sally). O ensaio é uma lição sobre a doença conhecida hoje como bipolaridade, e sobre o que deve ou não virar literatura.

“Para que o cérebro se mantenha sadio, ele precisa permanecer ativo, fascinar-se, divertir-se, explorar e experimentar até o fim”, diz Oliver Sacks no texto “O Cérebro Idoso”. Aí está uma frase para você não esquecer, mesmo quando a vida estiver difícil.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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