Conto de Natal – ou Demitir em dezembro é muito mais gostoso

Já pressentindo o tamanho do peru de Natal, a extensão da ressaca em Matinhos e a dureza do ano novo, o Coitado é repentinamente chamado à salinha para uma conversa.

– Você pode dar um pulinho aqui um instantinho?

Pelos diminutivos, percebe que boa coisa não é. No país da cordialidade todos aprendem rapidinho que as grandes desgraças corporativas costumam rimar com “inho”.

Com trêmula tentativa de vã dignidade ele caminha da mesa de trabalho ao matadouro em câmera lenta, um jeito infantil de retardar o abate que só serve para aumentar insuportavelmente o conteúdo dramático da cena.

Reengenhariazinha. Reduçãozinha. Adequaçãozinha. Enxugadinha. E o empreguinho garantido depois que passasse a crisezinha. Sei! Entre um passo e outro ele lamenta não ter aderido prontamente à Revolução Bolivariana e seguido o seu profeta local na ocasião da histórica Abertura do Mar Vermelho de Curitiba.

Os colegas acompanham seu desfile, tensos, mas sem excessos que possam ser interpretados como solidariedade, pois, em tempos de crise, o Vírus Degola é ainda mais contagioso.

O Coitado devolve os olhares bovinos com um olho da rua, vendo que já é peixe fora da água, desprezado em silencioso uníssono pelas piranhas, traíras, tubarões, robalos, trutas e lambaris de valeta do escritório.

Neste momento o coitado se transforma em coitadinho e acelera em direção ao golpe fatal.

A portinha à sua frente não esconde, certamente, o cenário adequado para cheques de bônus, prêmios por produtividade, medalhas por serviços prestados, promoção por méritos ou algo do gênero.

Ali era a entrada para a clássica “salinha”, rampa de lançamento em forma de escorregador de parquinho de prédio que leva direto para a rua da amargura. Ele mete a mão na maçaneta com decisão: seja como for, mas que seja rápido. Depois, sentado na calçada, observando a água da sarjeta, ele pensaria na volta por cima, na vingança contra aqueles imundos porcos capitalistas.

– Um minutinho. Senta aí, serve um cafezinho pra nós.

À sua frente, gingando na poltrona executiva com amortecedores hidráulicos, a hiena sorridente ao celular, antegozando o prazer de uma legítima demissão em dezembro, decretada depois que o Coitado já esmerilhou o cartão de crédito, vaporizou o 13º e desintegrou a parcela do terço das férias que vendeu.

“Definitivamente o Chaves tinha razão, ele e aquele outro, o índio”, matutava, coitadinho, já começando a considerar razoáveis, inclusive, os argumentos daquele esquisitão da Coréia do Norte. De quando em quando o algoz do outro lado da mesa mostra os dentes de crocodilo e agita a mão cheia de bichos pedindo um pouquinho mais de paciência.

Finalmente, depois de um sonoro “tá combinado então, cachorrão, passa aqui pegar seu uísque”, o coisa ruim larga o celular, não sem antes dar uma conferida em algum mistério na tela imensa e reclamar que ganhou o aparelho da mulher, mas não tem a mínima ideia de como atualizar a porcaria de um número.

A criatura lupina, finalmente, olha nos olhos do Coitado, pigarreia, apanha a caneta, separa uns papéis, confere alguma coisa com fingida distração, faz o seu famoso silêncio preparatório e dispara:

– Você sabe que tem essa crisezinha aí… …tá ruim pra todo mundo… o trem tá feio, companheiro…

O coitado concorda com a cabeça e acrescenta mentalmente: “bem feito, quem mandou eu não escutar o Chaves e o Kim Jong II”. O outro continua, girando a cadeira para lá e para cá.

– Vou ser franco… Eu pessoalmente não concordo, mas é coisa do patrão, tá tudo aqui, ó. – A cascavel chacoalha os papéis. – Coisa de chefe, entende? Uma reduçãozinha de despesas.

O escorpião deixa o suspense no ar e o Coitado suspende a respiração.

– Vou ser bem direto, não tem jeito bom de dizer isso. É o seguinte… – prossegue a besta do apocalipse – …neste fim de ano a firma não vai bancar a confraternização… eu achei isso uma tremenda sacanagem e estou propondo que a gente faça uma vaquinha…

A mente do Coitado paralisa, seus olhos esbugalham, o suor passa as sobrancelhas e queima os olhos.

– Calma, rapaz, não precisa se assustar, é pouco… já fiz até as contas… tá tudo aqui… se você concordar é cinquentão por cabeça para cerveja, refrigerante, churrasco, salada, uma linguicinha esperta. Vamos fazer lá em casa mesmo, assim a gente fica mais à vontade. Só não me vá entrar de cueca na piscina, olhe lá, hem…

A mão trêmula do Coitado estende as notas amassadas, assina ao lado do seu nome na lista e vai saindo lentamente, mas sua vontade é correr, ir direto ao refúgio do carro com 160 prestações em aberto e voar até a segurança do apartamento financiado em 48 anos. Abre a porta e já está acelerando na curva do corredor quando ouve a vozinha vinda do interior da salinha.

– Ah… só mais uma coisinha…

Sua espinha congela, o celular do outro toca o hino do Athletico. Pausa macabra.

– Avisa a macacada pra ninguém sair sem acertar comigo, que eu ainda tenho que encomendar a carne!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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