Contra negros e pobres, Bolsonaro prefere imunização darwinista

Irresponsabilidade política e moral do presidente na pandemia gera sequência ininterrupta de covas rasas

A morte a todos iguala, diz o ditado, mas isso não é verdade. Cada um que vai carrega o que foi. A morte, como a vida, distingue.

O memorial Inumeráveis, a que O Globo deu voz nesta semana, registra e homenageia os abatidos pela Covid-19. Cada nome se acompanha de uma frase, da pena de um de seus próximos. Soam como minicontos ou haicais das trajetórias interrompidas de pessoas insubstituíveis. É leitura pungente. Ali estão brasileiros de muitas idades, várias profissões, todas as personalidades. Foram amados e farão falta. Produzem um luto privado e solitário. Não há velórios nem despedidas.

É morte asséptica e em larga escala. A pandemia levou ao paroxismo a velocidade dos funerais. O ritual já vinha sendo encurtado. No ritmo alucinado das existências contemporâneas, falta tempo para velar um corpo por 24 horas, como antigamente.

Antes do coronavírus tudo açambarcar, a indústria funerária já provia maneiras cada mais higiênicas de afastar os mortos dos vivos. São banhados, vestidos, maquiados, para se assemelharem ao que deixaram de ser. Almeja-se o finado que parece dormindo, mas não na sua cama.

Aí estão as “funeral homes”, que apenas evocam as casas de família. Há cemitérios-jardins, para que a beleza natural empane a memória da perda, e há a cremação, que anula o túmulo, emblema físico da perda, para salvaguardar na memória a pessoa exuberante.

O sociólogo Norbert Elias trata de tudo isso em “A Solidão dos Moribundos”. Disseca o processo que transfere os agonizantes dos cuidados domésticos para os dos profissionais da saúde.

Vão sendo despedidos da vida, enquanto os sobreviventes se adaptam a um cotidiano sem eles. No Ocidente, esse distanciamento “da indesejada das gentes” começou pelos estratos altos e foi se popularizando em todos os grupos sociais.

A pandemia acelerou o alijamento e produziu a ilusão da morte democrática, ao apartar doentes e corpos contaminantes, tanto de ricos como de pobres, mas o noticiário todo dia escancara que há tantos jeitos de morrer quanto de viver.

agonia amparada em hospital de primeira linha é para poucos. Pouquíssimos. O UOL informa que uma UTI aérea de Belém a Brasília custa R$ 40 mil, e de Manaus a São Paulo são R$ 80 mil. O serviço cresceu 30% no pós-Covid, mas quantos podem busca a salvação de jatinho? A quase totalidade dos brasileiros não pode.

Embora o SUS venha fazendo das tripas coração, é incapaz de atender em simultâneo todos os que o presidente manda circular. Desta irresponsabilidade política e moral do governo nasce sequência ininterrupta de covas rasas.

Enquanto Bolsonaro defende a saúde econômica das barbearias, muitos perecem sem atendimento. Agonizam em ambulâncias, portas, corredores de hospitais, ante médicos e enfermeiros impotentes. E outros tantos voltam a morrer à moda antiga, em casa, nos braços de seus íntimos desesperados por não ter como salvá-los.

Faltam estatísticas completas sobre o perfil dos falecidos, mas é só ligar a TV para saber quem compõe a maioria. São os pobres, são os negros. Nenhuma bravata presidencial pode desmenti-lo. Ao deixar ao deus-dará o controle da pandemia, o governo federal condena um perfil bem específico de brasileiros ao cadafalso.

Não lhe ocorre cuidá-los. Prefere a imunização darwinista, que todos se exponham e sobrevivam os fortes. Se muitos expirarem, que achem quem lhes enterre, porque nem o presidente, nem sua secretária da Cultura têm a dignidade para a tão terrível quanto honrosa ocupação de coveiro.

No 13 de maio, quando o país ultrapassou os 12 mil cidadãos perdidos para a doença, o ministro que xingou o STF (na reunião delatada por Moro) homenageou uma princesa no Twitter. Isabel nada mais fez que assinar medida —pela qual o movimento abolicionista lutou por duas décadas— de cuja produção esteve ausente.

Em 1888, libertaram-se cerca de 700 mil escravos oficiais —afora os ilegais, pois as leis do Ventre Livre e dos Sexagenários nunca se efetivaram completamente. A norma demorou a vigorar e nada proveu para os libertos.

Muitos de seus descendentes estão no mesmo desamparo a que a Monarquia os relegou e no qual a República os mantém. No ano passado, 1.054 pessoas, informa também o UOL, foram encontradas em cativeiro no Brasil. Basta olhar a cor delas e a dos moribundos nas filas hospitalares para ver que este é um país assombrado pelos fantasmas de seu passado. E presidido por um deles.

Angela Alonso

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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