Da ortotanásia à necropsia

Escolhi: jamais serei entubado. E já decidi: vou doar o corpo para estudos. É uma carcaça um pouco estropiada, certamente Rembrandt a recusaria como modelo. Mas, para a eterna carência de corpos nas faculdades de medicina, está de bom tamanho, e não me refiro à circunferência abdominal.

No estado em que está, preenche os requisitos básicos para incontáveis e proveitosas lições de anatomia: contém, na íntegra, todas as peças originais de fábrica. A instituição que topar a doação levará, a custo zero, órgãos, glândulas, tecidos, ossos, cartilagens, sistemas completos. Não aceitarei devoluções, é lógico. Piadinhas junto à mesa, tudo bem – não creio em auto-estima após a morte.

Embora não seja conservado em álcool, com certeza meu corpo se adaptará bem ao formol diluído a 10%. E apesar de flexível com a vida e com as idéias, prometo não resistir à rigidez cadavérica. Quer dizer, lá estarei, seja qual for a aula e quais forem os alunos, um organismo disponível, submisso, literalmente aberto à curiosidade científica.

Antes que recusem, melhor realçar as qualidades físicas da oferta. Este corpo, de menos de 1,70m e acima dos 80kg, eu o reputo saudável, graças à relatividade: comparado com os mais idosos, estou relativamente moço; e só relativamente velho se comparado à gurizada.

Ciente da importância dos cuidados com um corpo a ser doado, eu o mantenho, senão na sua plenitude fisiológica, pelo menos em atividade normal, com funções satisfatórias e regularmente higienizado. Tomo os remedinhos sempre que lembro, não corro mas ando bastante, nunca fumei, nada de insônia e gastrite e hemorróidas, o que atesta certa saúde mental. De fora, a impressão que dá é que estou vivo. Assim, em prol da ciência, chegado o momento – antes, não! – até à vitalidade renunciarei.

Tirando a aparência (mais de seis décadas de moderado uso contínuo, até agora) e intervenções mínimas (uma ponte mamária), devo bastar para as lições de anatomia de alunos não tão exigentes. Ao saber que o corpo é de um ex-humorista, quem sabe tentem perscrutar esse mistério da natureza, que é o software do riso, exclusivo da espécie. Onde estará ele? Duvido que bisturis e pinças o encontrem no meu hardware fatiado. Não custa procurar, candidato a neurologista.

Como fonte de saber, quem sabe eu renda alguma inédita investigação, contribua de alguma maneira para o currículo da moçada de avental branco. Sou cardíaco, hipertenso, diabético e ainda tenho hipotireoidismo, afora coisas que desconheça. Até lá, nunca se sabe, poderei adquirir outras porcarias, males que só os centenários acumulam. Sem querer me gabar já me gabando: este corpo aqui tem tudo para suprir pesquisas em várias especializações clínicas!

Pensar nessa doação dá o que pensar. Nas dificuldades dos cursos e nos efeitos sobre os novos médicos. Em questões de consciência social – se quase ninguém se motiva a doar órgãos para salvar vidas, irão doar corpos para estudantes terem melhores condições de aprendizado?

Em aspectos ritualísticos: cemitérios verticais são monumentos à morbidez e templos de hipocrisia; e cremação torra mais grana que matéria. (Na verdade, meu sonho de consumo post-mortem era virar uma peça daquele anatomista alemão, o Gunther von Hagens. Infelizmente o artista tem um pendor por corpos atléticos.)

O mais convincente argumento interior para esta decisão, porém, é filosófico. Já que a minha sabedoria não foi aproveitada em vida por ninguém, sempre me restaria uma vaidade metafísica. Que adianto aos meus futuros e estudiosos dissecadores: aprendam comigo enquanto estou morto.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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