Derrubada de estátuas é a imposição do esquecimento

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente

A Oxford Union, representação dos estudantes da Universidade de Oxford, votou a favor da campanha “Rhodes deve cair”, iniciada numa universidade sul-africana com o objetivo de remover a estátua de Cecil Rhodes da fachada de um dos edifícios da universidade britânica.

No fim, a estátua fica, graças à pressão exercida por grandes doadores de Oxford. O dinheiro dobrou os intelectuais, impedindo-os de agir como vândalos, coisa que gostariam de fazer.

Rhodes é o maior ícone do imperialismo britânico na África. A sua figura personifica a ideia racista da “missão civilizatória do homem branco” que impulsionou o empreendimento colonial do outono do século 19. As sementes do apartheid na África do Sul e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) foram plantadas no solo que ele arou.

Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde.

Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado —ou melhor, sobre incontáveis camadas de passados. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social.

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado.

Sua derrubada não é um chamado à reflexão sobre os erros, os crimes, a tragédia e a dor, mas a imposição do esquecimento.

A transferência das estátuas malditas para museus ou parques temáticos, retirando-as de seus contextos, tem efeito similar. Num caso, como no outro, trata-se de higienizar os lugares de circulação cotidiana, reservando o exercício da memória a uma elite de especialistas da memória.

Rhodes, o pecador, não está só. De Pedro, o Grande, a Thomas Jefferson, de Marx a Churchill, de Machado de Assis a Monteiro Lobato, ninguém passa no teste contemporâneo dos valores.

A lógica férrea do vandalismo do bem conduz a um programa de terra arrasada. O rastilho de fogueiras purificadoras nada poupará, a não ser as novas estátuas esculpidas pelos próprios vândalos do bem, que virão a ser derrubadas por seus futuros seguidores. O presente perpétuo —eis a perigosa ambição dessa seita de iconoclastas.

Lenin caiu, às centenas, por toda a antiga Alemanha Oriental, nos meses loucos que se seguiram à queda do Muro de Berlim. Aquilo foi uma revolução popular. As estátuas derrubadas eram a representação pública de um poder real, opressivo e totalitário.

Borba Gato, matador de índios e proprietário de escravos, deve cair.” Os alemães que limpavam as ruas do Lenin onipresente estavam mudando o presente. Os vândalos do bem investem contra sombras do passado. Mascarados de radicais, eles ajudam a desviar os olhares das iniquidades do presente.

Quem tem o direito moral de suprimir os lugares da memória? Se concedermos esse direito aos vândalos do bem, como negá-lo a governos eleitos democraticamente? E, se é assim, como criticar a remoção da estátua de Imre Nagy, líder da revolução democrática húngara de 1956, pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, um nacionalista de direita aliado de Vladimir Putin? Ou como impedir que Jair Bolsonaro ou algum assecla eleito derrube a escultura “Vlado Vitorioso”, homenagem a Vladimir Herzog implantada numa rua do centro de São Paulo?

A Universidade de Oxford tem quase mil anos. Há pouco mais de um século ela cantou as glórias do imperialismo britânico. O registro esculpido na sua fachada será preservado e cercado por texto de contextualização histórica. Os vândalos do bem perderam essa —mas não desistirão de acender fogueiras.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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