Deserto de homens e ideias

No período antecedente à proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o esforço realizado pelos entusiastas da ideia não foi coeso e nem harmônico. “Diferenças de ideias, de tendências, de temperamentos, de interesses, conflitos de ambições iam aos poucos formando alas e correntes que não deixavam de impor soluções ou de motivar colisões mais ou menos violentas, por mais que as convergências partidárias tentassem ocultá-las ou atenuá-las”.

O testemunho é do historiador Barbosa Lima Sobrinho na biografia Presença de Alberto Torres, que a prolífica Editora Civilização Brasileira publicaria em 1968, o ano que não acabou.

Segundo Barbosa, a mais grave das divergências brotou nas entranhas do Partido Republicano Brasileiro, polarizando os dois grupos mais representativos liderados por Quintino Bocaiúva e Silva Jardim. A diferença entre ambos se dava em torno da intensidade da propaganda republicana, à qual Jardim, bem mais moço e arrojado que Bocaiúva propunha um ritmo mais agressivo. “Ambos, aliás, eram fluminenses de nascimento. Mas havia qualquer coisa de distante e hierático em Quintino Bocaiúva, ao passo que Silva Jardim era todo inquietação e tumulto, veemência e ímpeto”, escreveu.

Nessa época, uma questão rumorosa se imiscuía no ambiente político que fomentava a República – a causa abolicionista – que ao mesmo tempo empolgava grande número de republicanos, embora fosse vista com enorme reserva pelos demais.

Bocaiúva, habilíssimo na articulação política, procurava exercer sua liderança no sentido de equilibrar as forças antagônicas e, assim evitar a cisão do partido, fato que teria consequências desastrosas sobre o elã do movimento de emancipação. Foi na efervescência desse debate que surgiu a figura de Alberto Torres, jovem político também nascido no Estado do Rio e mais identificado com a posição de Silva Jardim, mesmo que viesse dele divergir dentro de pouco tempo.

Conquistando o respeito de seus pares pelo esbanjamento espontâneo das evidências de sua vocação para a vida pública e devoção à República, Alberto Torres discursava que “isso é o que aspiram os republicanos brasileiros; essa é a única República atualmente realizável, a única solução à crise política que nos convulsiona, solução capaz de impedir o reinado bélico, clerical e reacionário do Conde D’Eu e da Princesa Isabel”.

Em artigos publicados nos jornais da época, especialmente a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, Torres era cristalino na formulação da tese republicana quando propunha a substituição da monarquia pelo regime republicano democrático, no qual os deputados cuidariam do Legislativo e o poder administrativo seria confiado à execução do presidente do conselho.

Numa antevisão do que iria ocorrer com a passagem do tempo, especialmente ao se enfocar as duas décadas e meia desse século, Torres pregava que “a função legislativa competirá unicamente aos deputados”, sendo que os poderes Legislativo e Executivo serão distintos e independentes. Em resumo, dizia que as províncias, hoje estados, “constituirão uma confederação republicana”.

Tido na sua época como uma das mais claras e limpas consciências do país, pensador construtivo e consequente, segundo o historiador José Honório Rodrigues, Torres foi eleito para a Câmara dos Deputados, sendo sua primeira função discutir o projeto de lei da criação do Tribunal de Contas da União, previsto na Constituição de 1891. Anos depois exerceu também o cargo de governador de seu estado natal, sendo nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal.

Homem de profundas convicções, na visão do biógrafo Barbosa Lima Sobrinho, também esse dono de personalidade humanística e política de altíssimo nível, o admirável senso moral de Alberto Torres, “que estava longe desse moralismo histérico, composto com a essência da hipocrisia”, não lhe permitia “ver na astúcia, ou nos meandros das fórmulas maquiavélicas, senão uma síntese do que há de inferior e de subalterno na criatura humana”.

A política proposta pelo estadista republicano era aquela direcionada à coordenação dos fatos e à procura de soluções evolutivas, cujo método podia ser resumido em quatro verbos: ver, estudar, praticar e refletir. Torres sintetizou tudo isso ao detalhar, mais uma vez com aguda premonição, que “a política, tal como se tem praticado, veio tendo expressão, salvo casos excepcionais de compreensão genial, em duas correntes de atos, ambos anárquicos: os atos partidos do poder, destinados a estabelecer uma ordem, nos interesse dos dominadores, de sua sociedade, e dos intuitos arbitrários que os dominam; os atos partidos de baixo – não dos povos, senão daquelas de suas camadas que já têm conquistado força suficiente para se imporem, consagrando, por sua vez, os direitos e vantagens que conseguem ditar”.

Uma lição intemporal de Alberto Torres se recolhe da certeza de que “somos um país sem direção política e sem orientação social”, desafio mais excruciante num momento de crise que nos coloca diante de um realismo sem precedentes, no qual se compreende que “a arte política demanda um forte e profundo preparo – suas soluções não se encontrando sequer esboçadas nas folhas dos livros mais sábios. À aplicação direta das lições dos filósofos e doutrinadores devem-se os maiores desastres da política contemporânea. Os homens de governo ganharam em preparo técnico, mas os fatos cresceram em variedade e complexidade, e o conflito entre fatos e teorias assumiu proporções gigantescas, porque as doutrinas não têm relação com a natureza dos fatos”. A síntese genial consta do livro A organização nacional, autêntico legado intelectual de um dos melhores brasileiros de todos os tempos, um homem cuja formação, experiência de vida e senso moral, especialmente nos dias atuais certamente reacenderiam a esperança e inspiração do povo brasileiro.

Não seria estranho invocar, nesse contexto, a peroração de outro brasileiro de escol, uma das raras vozes a sobreviver à enxaqueca ética e política da Era Vargas – o ministro Oswaldo Aranha – para quem o Brasil se transformara “num deserto de homens e idéias”.

No meio da semana tive a oportunidade de ouvir o procurador da República Deltan Dallagnol, que falou aos membros do Rotary Clube Curitiba Centro e Conselho Político da Associação Comercial do Paraná, sobre os resultados da Operação Lava Jato. Ao lado do juiz federal Sérgio Moro, o procurador forma a dupla de brasileiros mais respeitados e celebrados pela opinião pública, tendo em vista a excelência do trabalho realizado até o presente momento.

É óbvio que a Lava Jato é integrada por um grupo de juízes, promotores e policiais federais, muito embora os refletores sejam dirigidos a Sérgio Moro e Deltan Dallagnol mesmo por força da relevância do trabalho quem têm executado e pelo fato natural de terem se tornado figuras exponenciais do processo investigatório. Entretanto, sabem todos que esses exemplares servidores da sociedade jamais se valeram de quaisquer prerrogativas de convocar a mídia para o desfile de egos ou vaidades pessoais.

Diante da escassez de homens íntegros e honrados como José Bonifácio de Andrada, José Maria da Silva Paranhos, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Alberto Torres, Rui Barbosa, Alceu de Amoroso Lima, Sobral Pinto, Barbosa Lima Sobrinho, Bento Munhoz da Rocha, Arnaldo Pedroso Horta, Ariano Suassuna, Paulo Brossard, Ulysses Guimarães e alguns poucos da mesma estirpe, o Brasil amarga uma das mais devastadoras crises morais da história republicana.

ivan schmidt Blog do Zé Beto

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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