Devolvam a nossa bandeira

Pobre do psicopata que nunca vai sentir tristeza e desespero

Quando eu era criança, em época de Copa do Mundo eu ajudava a pintar a bandeira do Brasil na rua, em frente à casa dos meus avós. Juntava um monte de gente da família (todo mundo morava meio perto), e eu podia ficar mais tempo brincando com meus primos. A gente também fazia bandeirinhas e pendurava em barbantes pra enfeitar os portões. Quando ia começar o jogo e tocava o hino, ficávamos amontoados na sala cantando com os jogadores (que ainda não eram bilionários e apoiadores de presidente genocida).

Meu avô colocava a mão no peito e minha avó perguntava, preocupada, “é o coração?”, mas ele só estava sendo muito patriota. Eu, que sempre fui emotiva além da conta, chorava feito besta e tinha a minha clássica dor de barriga de quem estava tão feliz, mas tão feliz, que passava mal.

Depois, quando mudei de escola, descobri que todos os dias, após o recreio e antes do retorno para a classe, a gente tinha que cantar o hino e ver a bandeira ser hasteada. Confesso que aquele calor do meio da tarde dava um sono danado, mas nós, as meninas, aproveitávamos a fila ao lado dos meninos pra pegar na mão deles. E os professores deixavam, porque achavam que era amor à pátria. E vai ver era mesmo. Muitos namorinhos começaram por causa disso.

Aos 20 e poucos anos eu me inscrevi num prêmio que era o maior sonho de todo aspirante a publicitário, o Young Creatives. Fiquei em 11º lugar, e apenas os dez primeiros iriam pra Cannes com tudo pago e uma agenda infinita de palestras incríveis e festas promissoras. Eu chorei uma manhã inteira quando meu chefe da época, o Pedro Cabral, resolveu me mandar pela agência e ainda me hospedou num hotel bem melhor do que o muquifo em que ficaram as outras pessoas (perdão!).

Eu estava em uma fase em que amava tão absurdamente a minha vida, o meu trabalho, o futuro que me acenava reluzente e essa oportunidade (meu primeiro grande reconhecimento profissional), que quando vi dezenas de bandeiras do Brasil espalhadas pela Riviera Francesa tive medo de que meu coração parasse. Eu sei que é brega o que vou dizer, mas é um longo caminho do Tatuapé para o mundo, e eu senti como se chegasse à Lua e fincasse lá o meu verde e amarelo. Depois de muitas madrugadas ralando feito uma condenada e sofrendo bullying (porque 1- eu levava marmita e 2- a tampa dela era de oncinha), admito que me comovia com o lance do “sou brasileiro e não desisto nunca”.

Daí resolvi que queria mesmo era ser escritora, e minha obsessão passou a ser o respeito dentro do meio literário, mais especificamente dentro da panela apimentada por barbudos com orgulho de ganhar parcos reais por página traduzida e feministas com sotaque de colégio-caro-cabeça. E de novo foi puxado. Eu não tinha feito letras ou sociologia na USP e ainda tingia o cabelo de loiro. Me odiaram o quanto puderam até perceberem que eu era legal pacas.

Quando eu já era “aceita”, houve um churrasco inesquecível para ver um jogo do Brasil. A CBF, apesar de já ser a CBF, ainda não era estampa de gente ignorante, fascista e nojenta. Acho que foi a última vez que usei verde e amarelo com o orgulho de um nacionalismo romântico pau-brasil e não temendo ser associada a um nacionalismo nazista pau de arara.

Hoje observo meu país agonizar nos corredores cruéis do descaso. Meu hino ser usado por criminosos que disparam armas de pressão contra as janelas de Perdizes. Minha bandeira aquecer dementes que bradam contra enfermeiros e a democracia. Pobre do psicopata que nunca vai sentir tristeza e desespero.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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