Dicionários pessoais

Cada escritor tem o seu cinto de utilidades na estante, proporcional às necessidades profissionais: gramáticas, dicionários, enciclopédias. Como nenhum autor é igual a outro, a variedade de obras auxiliares é extensa. Não custa imaginar uma customização retrô nas prateleiras de alguns literatos.

Na fase mais delirante da carreira, Franz Kafka rejeitou os livros normais de consulta. Se agarrou obsessivamente a um compêndio de entomologia.

Auto-suficiente, Guimarães Rosa criou o seu original léxico.

Aproveitando as tantas novelas de cavalaria conhecidas, Cervantes remonta tudo e põe um alfarrábio na algibeira de Dom Quixote, que enlouquece na leitura.

Em vez de ir à uma livraria e adquirir um precioso Webster, o genial James Joyce prefere pegar um exemplar da Odisséia e fazer um vertiginoso remix das palavras.

Com vasta cultura, Millôr Fernandes, o pai dos humoristas brasileiros, convida as palavras a fugirem das páginas solenes dos livros de referência e as leva para um recreio – o Dicionovário – em que oxigena o português.

Na sua cabeceira, Jorge Luis Borges mantinha uma pilha de incontáveis dicionários e enciclopédias que jamais foram escritos ou publicados. Para produzir seus contos fantásticos, ele os consultava às cegas.

Peso, tamanho e volume são os exageros físicos dos dicionários. O verborrágico Paulo Leminski possuía um dos maiores, um Catatau.

Para Ambrose Bierce, o recurso foi adaptar os verbetes da Britânica à sua ótica cética e pessimista. Assim nasceu e faz sucesso até hoje o Dicionário do Diabo.

Já pro Dante Alighieri, uma única obra de referência bastou para guiar a sua monumental poesia: a Bíblia.

Vendo que palavras de sons semelhantes não eram a solução, Carlos Drummond de Andrade atirou o dicionário de rimas pela janela, que foi apanhado por um tal de J. G. de Araújo Jorge.

Certa noite de tempestade, Mary Shelley foi à biblioteca e desfolhou os exemplares de uma enciclopédia. Em seguida, costurou aleatoriamente as páginas até formar um grosso exemplar, que encadernou e por onde passou a se orientar nas dúvidas de linguagem.

Num esforço de pesquisa dos mais autênticos, Charles Bukowiski compilou o seu dicionário a partir das paredes de banheiros públicos.

Mais preguiçoso, Luis Fernando Veríssimo contratou um popular Gigolô das palavras como consultor particular.

Quanto ao meu próprio amansa-burro, tem apenas o essencial: só as orelhas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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