Dois cavalos no tabuleiro da vida

Dia 18 de agosto de 2019, domingo, três dias depois do meu aniversário. A quinta edição do Torneio Internacional de Xadrez no Hotel Sesc Caiobá estava terminando, pouco antes das 18h. Eu vinha monitorando o clima, sabia que teríamos chuva. Pensei em dormir no hotel, como alguns mestres iriam fazer, mas cedi à tentação de voltar para casa.

Como diretor do torneio, me certifiquei de que tudo estava resolvido. Cerimônia de premiação, pagamentos aos vencedores, checkout dos jogadores. Então o Grande Mestre José Fernando Cubas, do Paraguai me disse estar procurando carona até a Rodoviária de Curitiba: iria para Joaçaba, onde vivia. Pois, se não se importasse, que fosse comigo a bordo do valente peão negro que me transporta, um Fiat Cinquecento.

Viemos conversando sobre a coincidência de sobrenome, porque meu pai era Cubas e só não tenho o sobrenome por implicância da minha mãe, que exigiu o Lopes de sua família.

Escureceu e começou a chover. Movimento intenso na BR-277. Além do excesso de caminhões, muita gente que havia aproveitado o bom tempo do fim de semana estava voltando para casa.

Quase chegando ao trevo de Morretes, vi com o canto do olho um cavalo no acostamento da direita. No mesmo instante, batemos em algo grande. Em seguida acertamos mais alguma coisa. O para-brisa estilhaçou, tudo ficou escuro. Cubas gritou:

– Caballo, caballo!

Não consegui abrir a porta, o carro havia batido no guard-rail da esquerda. Saí pelo lado do acompanhante. Cubas sacudia meus ombros:

– Ernani, estamos revividos! Sobrevivimos, Dios mio!

Só depois disso é que soubemos o que havia acontecido. Uns cavaleiros voltavam de uma cavalgada no litoral. Dois cavalos vinham amarrados ao líder – aquele que enxerguei com rabo de olho. A chuva, a ventania gerada pela passagem dos caminhões, a luz reverberando no asfalto molhado assustaram os cavalos de trás, que invadiram a pista. O maior deles foi o primeiro a ser atingido. Sua cabeça bateu no alto da capota, abrindo um buraco sobre o espelho central. O outro cavalo, menor, subiu pelo capô e caiu sem entrar no interior do carro.

Dois cavalos mortos, um susto enorme, um carro semi-inutilizado, nós com algumas escoriações. Levou algumas horas para que pudéssemos deixar a cena do acidente. No caminhão-guincho que nos trouxe e ao que sobrou do carro, em meio a um infernal nevoeiro na serra, conversamos sobre a ironia daquele acidente:

– Cubas, veja você. O peão preto subia o tabuleiro em h6, quando vê um cavalo em g7. Elimina o adversário e aparece outro cavalo a ser tomado em h8. Isso só poderia acontecer com enxadristas.

O GM pensou um pouco antes de responder:

– Es algo raro, Ernani. Pero, lós dos caballos no sabían jugar ajedrez! En esas posiciones, seguro que no!

Tempos depois, alguém me disse que, por óbvio, os cavalos seriam brancos. Então fui obrigado a confessar: o único problema com esta história tão interessante, quase tragédia para nós e lamentável sentença de morte aos cavalos, é que eles eram pardos. Gateados, como se diz, em referência aos gatos, que à noite são todos pardos.

Na noite de domingo, 18 de agosto de 2019. Três dias depois do meu aniversário. Jamais vou esquecer aquela partida.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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