Sessão da meia-noite no Bacacheri – Vale a pena ver de novo

Underground – Mentiras de Guerra – (França, Alemanha, Bulgária República Checa, Hungria, Sérvia), 1995. Direção: Emir Kusturica. Roteiro: Emir Kusturica (baseado em história de Dusan Kovacevic) Elenco: Predrag Manojlovic, Lazar Ristovski, Mirjana Jokovic, Slavko Stimac, Ernst Stötzner, Srdjan Todorovic, Mirjana Karanovic, Milena Pavlovic, Danilo ‘Bata’ Stojkovic, Bora Todorovic, Davor Dujmovic, Nele Karajlic. Duração: 170 min.

Era ma vez um país… Era uma vez [um pedaço] da história do século XX na Europa. Era uma vez um diretor de guerras e festas, de cenários barrocos e realistas, de roteiros alegóricos sobre História, política e sobre as muitas faces da humanidade. Era uma vez um lugar de mentiras, uma fábrica de armas chamada Underground, um filme de Emir Kusturica, diretor nascido em Sarajevo, capital da atual Bósnia e Herzegovina, independente da Iugoslávia em 1992. O filme em questão, falado em sérvio, alemão, francês, inglês e russo, é um apanhado plural das guerras e das políticas da Europa Oriental nos extremos do século vinte, da explosão da II Guerra Mundial em 1939 aos conflitos internos e de intervenção da OTAN que marcaram a região no anos 1990 e que podem ser divididos em três grandes categorias:

*As guerras separatistas dentro da República Socialista Federativa da Iugoslávia (1991 a 1995, de onde saíram independentes Eslovênia, Croácia e Bósnia e Herzegovina);

*As guerras de cunho étnico-político envolvendo os albaneses (1996 a 2001, com destaque para os conflitos de Kosovo, Sérvia e Macedônia);

*As duas grandes ações da OTAN contra a Sérvia, uma em entre 1995 e 1996 (Operação Força Deliberada) e outra em 1999 (Operação Forças Aliadas), na província e Kosovo.

Esse grande número de movimentações bélicas na região balcânica (a mais instável do Velho Continente) começou a dar os seus primeiros passos ainda nos anos 1980, após a morte de Tito, político bastante influente e admirado não só pelos seus compatriotas, mas pela comunidade internacional de diversos pontos da Guerra Fria — em seu massivo velório, em 4/05/1980, estiveram Leonid Brejnev, Margaret Thatcher, Indira Gandhi, Saddam Hussein, Yasser Arafat, Fidel Castro e Nicolae Ceauşescu, isso só para citar alguns (o nosso presidente, General Figueiredo, não pode ir, mas mandou o Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas, o General José Ferraz da Rocha) — e sua situação se agravou após a queda a URSS em 1991. O roteiro de Underground usa especialmente essas mutações políticas e conflitos bélicos para montar um quebra-cabeça ideológico e social de uma região inteira, mas o seu alcance pode ser para todo um continente, ou para o mundo inteiro.

Como estamos falando de um longa de Emir Kusturica, é importante ressaltar que o surrealismo (reinterpretado pelo diretor) e as formas mais nonsenses de mostrar conflitos humanos são a base do roteiro, como por exemplo, o cenário que dá título ao filme, o Underground, local onde um grupo de pessoas é mantido acreditando que a II Guerra ainda está acontecendo, mesmo 20 anos depois dela ter terminado. Nesse sentido, o subtítulo brasileiro cai muitíssimo bem à fita: Mentiras de Guerra. Primeiro, porque o roteiro trabalha as frequentes mentiras entre teoria e práxis, as mentiras que se conta e que se articula em massa para que uma situação X seja bem aceita ou que um líder X seja mantido no poder. Segundo, porque o filme foi lançado, oficialmente, no dia 1º de abril de 1995, mais um dos caprichos irônicos de Kusturica.

Acompanhando a saga de mentiras de guerra e problemas étnicos e ideológicos, temos a onipresente música de Goran Bregovic (que já tinha trabalhado com Kusturica em Vida Cigana e Arizona Dream: Um Sonho Americano). O compositor toma como base a música cigana dos Bálcãs, privilegiando a percussão e os instrumentos de sopro do grupo dos metais, mas mistura ritmos e melodias dos Cárpatos, do Cáucaso e dos Urais, criando temas e variações que combinam com a diversidade de povos e posições políticas que o longa aborda. Kusturica então usa a música como um contraponto quase independente, como em um dueto desigual, onde as vozes se harmonizam mas criam, no ouvido de qualquer um, sensações diferentes. A busca pela identidade e até o conflito entre identidades são bem representados por esta faceta do filme, que muito nos lembra a proposta musical que Federico Fellini tinha para seus longas e a forma como Nino Rota representava essa proposta. Como se não bastasse a riqueza das composições de Bregovic, temos ainda trechos da 9ª Sinfonia de Dvorák; da 3ª Sinfonia de Saint-Saëns e a execução da icônica Lili Marleen.

Kusturica levou três anos para finalizar Underground por completo, mas o resultado é simplesmente arrebatador. Sua predileção pelo fingimento teatral das interpretações, o diálogo com as artes e a metalinguagem, o desenho de produção caótico, a constante poesia no movimento interno dos planos (até os bombardeios — especialmente o primeiro — são líricos), a mistura de gêneros cinematográficos, a crítica social, os figurinos anacrônicos, a fotografia pendendo para o tom sépia, o complemento do que o diretor havia iniciado dez anos antes em Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, tudo está aqui em Underground. As quase três horas de filme são plenamente justificadas pela epopeia proposta pelo enredo e o seu significado final é do mais absoluto cinismo, o tom correto para por fim a uma jornada de guerra verdadeira, aquela que só é guerra quando um irmão mata um outro irmão.

Plano Crítico

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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