Éramos (e, até prova em contrário, ainda somos) três

Há alguns anos, quando eu não era alérgico a ácaros e, portanto, conseguia passar horas num sebo folheando livros sem botar os bofes para fora a cada página virada, encontrei um exemplar que, a julgar pelo aspecto, quase não valia o que pediam por ele, apesar de ser bem pouco. Livros assim são a maioria no meu tipo preferido de sebo, aqueles que juntam espólios com doações com encalhes de editora com produtos de roubo com salvos de naufrágio, e só numa verdadeira barafunda como esta é que eu consigo encontrar verdadeiras pérolas como O poltergeist de Suzano (relato de um complexo fenômeno paranormal ocorrido na mencionada cidade paulista), ou o Repertório Onomástico Brasileiro (com milhares de nomes próprios recolhidos e ordenados criteriosamente, sem apresentação de significado), ou ainda Fique quieta, por favor, de Raymond Carver, numa edição tirada pela Rocco em 1988.

 Se me arrependi de ter comprado o primeiro e desprezado o segundo, o mesmo não aconteceu com a aquisição do terceiro, apesar do pouco incentivo que vinha da capa da obra. Desenhada por alguém com muito mau humor, o amontoado de cliparts sobre fundo amarelo já um tanto desbotado contava apenas com a ajuda do título para que saísse dali e fosse habitar outras menos empoeiradas prateleiras. Tal título, de paradoxal grosseria — que pede “por favor” para que ela “fique quieta” —, atraiu-me de primeira, e é ainda melhor em inglês: Will you please be quiet, please. Penso que tenha sido bastante bem traduzido, visto que o pé-da-letra é no mínimo esquisito. Não conhecia o autor nem de ter ouvido falar, e como a folha de rosto me dizia que, por cinco paus, o troço seria meu, assim foi e é desde então.

 Digamos que Raymond Carver tenha sido não o responsável por eu começar a escrever — porque isso eu já fazia desde muito antes —, mas sim o culpado pela coragem de mostrar aos outros o que escrevia (não, eu não sei explicar melhor a importância de Carver na minha vida). Magnético, o livro fez com que eu entrasse um pela primeira página, e saísse outro pela última. Para quem não o conhece, arrisco um paralelo na pintura: ele é o Edward Hopper da literatura americana. Você também não conhece Hopper? Bem, eu fiz o que pude.

 Quando, depois, acontecia de falar sobre Carver, ninguém, em momento algum, sabia dele, de forma que comecei a pensar que era uma destas bostas que ando pela vida a encontrar, gostar e colecionar. Assim foi até que me apareceu o filho mais velho da minha mulher (eu ia dizer enteado, mas a palavra é feia demais) que, para surpresa minha, havia traduzido pouco tempo antes um conto do homem — Tudo grudado nela— como trabalho de conclusão do curso de tradução. Se ele gostava do conto? Mais ou menos. Se conhecia mais do autor? Nem uma linha. E eu continuava sozinho.

 Nesse meio tempo, acabei por descobrir que, além da mãe de Carver, pelo menos mais uma pessoa gostava dele: Robert Altman, que selecionou contos do autor e os adaptou para o cinema. Deles, saiu Short Cuts, filme que, em português, carrega a cruz de se chamar Cenas da Vida, que também virou livro-do-filme homônimo, e chegou a ser editado em português. Eu não estava mais sozinho: entre os não-parentes, éramos então, no mínimo, eu e Altman a gostar de Carver.

 Outro dia, fiquei sabendo que o filho mais velho de minha mulher (que eu vou acabar chamando de enteado, porque é mais fácil) andou a comprar tudo que era Carver à disposição no mercado. Deu-lhe um estalo, e o petiz arrematou o que encontrou em inglês, porque em português só há os dois títulos mencionados. Leu tudo, incluindo textos em versões diferentes, e professou: o cara é bom pra caralho! Pode não ter sido esta a frase exata, mas o sentido era. Nesse instante, percebi, eu e Altman não estávamos mais sozinhos: éramos três! “We few, we happy few!”, nas shakespearianas palavras de Henrique V que, criteriosamente, não tem porra nenhuma a ver com Carver.

Daí o Altman, que merda, foi morrer no mês passado. Falta do que fazer, sei lá como explicar a atitude do homem, mas, de qualquer forma, antes ele do que eu (ou meu enteado). Com isso, eu, que estava para escrever este texto há meses, parei. Talvez por falta de quorum.

Mas hoje resolvi continuar porque percebi que voltamos a ser muitos, isto é, três. Encontrei uma referência a Carver neste post, do Milton Ribeiro, em que ele bota o Fique quieta, por favor na lista de seus Clássicos Desconhecidos, aqueles livros e autores que a gente adora mas que, no dizer do Alex Castro (do LLL) “infelizmente, raios!, o resto da humanidade solenemente ignora“.

O Alex, em 2005, propôs a criação do Dia do Clássico Desconhecido, ideia que, até onde pude perceber, não chegou a vingar em 2006. Caso vingue em 2007, já fica então este post escrito, porque não gosto de acumular serviço.

Branco Leone

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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