Escritores e morte.

Guimarães Rosa

Lúcio Cardoso, o genial autor de Crônica da casa assassinada, com o perfil lutuoso e um pouco mórbido característico de sua personalidade, convida a amiga Rachel de Queiroz a visitar o necrotério. Rachel hesita, mas face aos inúmeros argumentos de Lúcio, a justificar que um escritor deveria experimentar não só epifanias, mas também “os abismos da existência”, acaba convencida e o acompanha até o IML carioca, na Rua Riachuelo.

Lá chegando, falta-lhe coragem para entrar. Fica na porta. Lúcio entra, sôfrego e um pouco irritado com a “covardia” de Rachel. Dali a cinco minutos, retorna – pálido, as mãos trêmulas, o olhar transtornado. E passa por Rachel, no hall da entrada, sem sequer lhe perceber a presença. Caminha rápido em direção à rua. Rachel vai atrás.Tonto, Lúcio Cardoso agarra-se ao primeiro poste e ali mesmo despeja um vômito avassalador. Rachel se aproxima e questiona: “Não te falei?!…”. Lúcio, antes de nova golfada na calçada, surpreende: “Não foram os cadáveres… Tenebrosos, sim… Mas o cheiro, Rachel, o cheiro…”.

Quem conta esta e outras histórias do grande autor mineiro é o meu amigo Ésio Macedo Ribeiro, que acaba de publicar, pela Nankin Editorial, um livro indispensável: O riso escuro ou O pavão de luto, minucioso percurso pela poesia de Lúcio Cardoso.Rosa e a morte.João Guimarães Rosa, o soberbo inventor de todo um mundo ficcional que é Grande Sertão: Veredas (50 anos da primeira edição, neste 2006!), considerado por muitos um dos mais importantes livros do século XX, diplomata, ex-médico de roça, era – afirmam os seus contemporâneos – extremamente feminil, embora heterossexual convicto.

Tinha, ainda, um gosto e uma alegria de viver que chegavam a irritar os mais casmurros. Apaixonado pelo ofício de escritor, senhor de glorioso casamento (com Araca) – e festejado por gregos e troianos – era, enfim, um homem feliz. Muito feliz. Extraordinariamente feliz.Místico, meio bruxo, postergou por mais de três anos sua posse na Academia Brasileira de Letras sob a alegação de que quando isto acontecesse, morreria. Dito e feito: ao tomar posse na ABL, depois de inúmeros adiamentos, ao chegar em casa sofreu um ataque cardíaco fulminante.

O fato é sobejamente conhecido do folclore rosiano. Mas o que ninguém esperava, face a um homem sempre feliz e que de certo modo teve uma morte “limpa”, foi a sua expressão de morto. No caixão, revela Antônio Carlos Villaça, nesta obra-prima que é O livro dos fragmentos, o seu rosto chegava a apavorar. Era o próprio semblante da angústia, de alguém que havia se assustado, de modo aterrorizador, frente à “indesejada das gentes”.

Um ríctus tomava-lhe o canto dos lábios, um ríctus de quem, visitado pela Morte, se recusara terminantemente a morrer. P.S.: O mais infame em ambas as histórias é que todos os “curiosos” da Morte aqui citados já passaram desta para outra – talvez menos inóspita. E da qual – inóspita ou não -, nenhum de nós, ai meu Deus!, escapará.

Wilson Bueno (28/5/2006) O Estado do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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