Evo Morales: lições da renúncia

Depois de renunciar à presidência da Bolívia, desistindo também de assumir pela quarta vez o cargo que ganhou em eleição fraudada, Evo Morales já fugiu para o México, fechando de forma vergonhosa uma história pessoal que, independente de divergências políticas que se tenha com ele, poderia ter sido gloriosa.

O desfecho pode servir para a esquerda latino-americana repensar o que vem fazendo nas últimas décadas em vários países do continente, a partir de resultados tão desastrosos quanto o do ex-presidente boliviano e algumas vezes até piores. Desta vez a Bolívia não viveu a tragédia típica de sua história, feita de crueldades espantosas até para uma América tão repleta de dores.

O próprio final da carreira de Evo Morales trouxe uma novidade política na América Latina, com as Forças Armadas atuando com bom senso, apenas avisando ao fraudador político para que ele saísse de cena antes da Bolívia ser envolvida pela violência. Esta forma de interferência dos militares acentua a desonra da esquerda e sua falta de semancol e irresponsabilidade, mas bem que isso podia servir para uma autoavaliação sobre equívocos que vão se acumulando não só entre os bolivianos como em outros países, inclusive no nosso Brasil, onde ainda que tenha sido com mais sutileza, militares andaram dando pitos exigindo mais responsabilidade da classe política.

Como eu disse, Morales poderia ter deixado uma marca histórica positiva, no entanto se deixou levar pela ambição da permanência eterna no poder, defeito grave de toda a esquerda da América Latina, que ao contrário do que propaga com seu discurso coletivista, sofre há décadas dessa fixação em um poder personalista, com um apego até contraditário a figuras que não passam de caudilhos falsamente se fazendo de líderes socialistas.

O ex-presidente da Bolívia desrespeitou o resultado de um referendo de 2016, convocado por ele mesmo, quando a população boliviana disse que não queria que ele tentasse um quarto mandato consecutivo. Mesmo assim, a partir de ingerência sua na Suprema Corte e no Tribunal Supremo Eleitoral (TSE), abriu-se a possibilidade pretensamente legal da reeleição para um quarto mandato. Com a tentativa de fraude, vieram os protestos nas ruas e a renúncia depois do aviso militar para que ele desse o fora.

Já faz tempo que a esquerda brasileira devia estar se aprimorando com lições vindas de lugares de maior complexidade no debate político, como por exemplo a Comunidade Europeia, de modo que fica até chato ter que aprender com uma realidade política tão atrasada como a da Bolívia. Mas como não tem outro jeito, que bom seria que criassem juízo a partir desse episódio lamentável. Para isso, claro que teriam que aceitar algo que parece impossível encaixar no ideário esquerdista, que é a alternância no poder, com a rotatividade que dá vigor à atividade política e estimula na população a confiança no sistema representativo.

Sei muito bem que não é fácil para a nossa esquerda a mudança de hábitos antigos, com a exigência do respeito ao adversário e a aceitação de opiniões contrárias, mas que fique o alerta dos acontecimentos que levaram o companheiro de Lula, Maduro, Ortega e do falecido Fidel Castro a desocupar às pressas a cadeira de presidente. Como esquerdista gosta muito de dizer, são avisos da História, que é bom escutar com maior atenção de vez em quando, até para que depois ninguém seja obrigado a atender ao aviso de um fardado.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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