Fantasmas-Dependentes

Marx escreveu em algum lugar que pessoas à beira de uma mudança radical em suas vidas tendem a buscar no passado uma legitimação do presente. Assim os líderes da Revolução Francesa decidiram que, em vez de autores da grande novidade republicana, preferiam ser lembrados como democratas romanos redivivos. Robespierre e o resto da turma chegaram a pedir que, nos seus retratos oficiais, aparecessem usando togas.

A ideia era recuperar o “espírito” de uma época iniciando uma época nova, que assustava, pelo ineditismo, até seus fundadores. A audácia do ato inaugural da nova era – um rei deposto e depois decapitado – precisava de um precedente. O presente precisava de um passado para autenticá-lo, ou perdoá-lo. No seu livro Ulysses and Us, o professor de literatura irlandesa Declan Kiberd, que desenterrou a citação de Marx acima, usa a imagem de César botando a máscara de Alexandre para ser um César certificado.

Shakespeare, num solilóquio de Hamlet, chama a morte de terra inexplorada da qual nenhum visitante jamais voltou. Mas para efeitos de enredo a peça necessita de um morto que volta, e ele aparece como o pai de Hamlet, o “espírito” necessário, na forma de fantasma. É ele que guiará a trama até o desenlace, em que será vingado pelo filho. Que também morrerá, dizendo para o amigo Horácio, que quer ajudá-lo, “Let it be, Horatio”, muitos anos antes dos Beatles. E depois, com o último suspiro: “O resto é silêncio”.

O livro do professor Kiberd, como diz o título, é sobre o Ulysses, de James Joyce, e seu impacto na literatura e na vida de quem o leu, ou tentou ler. Um consolo para quem não conseguiu chegar ao fim, ou ao “sim” final, de Ulysses, é saber que o livro seguinte de Joyce, Finnegans Wake, enlouqueceu muita gente que quis escalá-lo sem a assistência de guias sherpas. O professor escreveu que Shakespeare e Joyce são exemplos de autores que mudaram radicalmente a linguagem literária e socorreram-se no passado para sustentar sua ousadia, Shakespeare recorrendo a vidas históricas convenientemente distantes no tempo, Joyce ao manancial de tipos e mitos com o epicentro em Dublin. E os dois fantasmas-dependentes.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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