Lesmas (a Jamil Snege)

Volto ao ancoradouro de Vila da Pedra, meu caro Franz, para fumar apenas um cigarro. É que eu trabalhei a madrugada inteira nas minhas Confissõesorgíacas e agora bateu um certo cansaço. O ar muito seco, muito azul, talvez me serene. Ontem fui à Tabacaria do Esteves, onde também se vende absinto, e avistei a divina Pilar, do outro lado da rua, com plumas brancas no chapéu. Eu só podia ver que ela entrava numa pensão sórdida. E olha que há vinte dias encontrei na minha caixa de Correio a notícia curta de que ela iria se casar. Com quem, meu amigo? Com o conhecido proprietário da Tabacaria, o Esteves, que ainda sorri. Então casou com o Esteves? Quis dizer a ele que sua esposa o estava traindo, mas decidi ficar quieto.

Pilar acaba de sair da pensão sórdida, atravessa a rua em direção à Tabacaria, e, agora sei: ela é, nas horas vagas, prostituta. Unicamente por não poder, com minha costumeira honestidade, contar ao Esteves o que vi, preferi fingir que fumava um Continental e perguntei a ele como era estar casado. O Esteves me respondeu que Pilar é uma espanhola que conhecera em Málaga, numa Semana Santa. O ex-marido dela, pacato consumidor de queijo, sofria de um terrível mal: nasciam-lhe lesmas na língua; lesmas não confiáveis. Ora uma das lesmas caiu no chá de Pilar e isso foi o suficiente para que as núpcias fossem desfeitas. Ela amara o ex-marido na cama de linho, atrás da igreja dos Lavados, o amara à beira do rio, no banheiro da estação de trem, e só por causa das lesmas decidiu vir para cá, à Vila da Pedra, e nos conhecemos ali no ancoradouro onde agora, em estado de óbvia distração, eu contemplo as nuvens.

Compreendo o romance e o motivo, só não entendo porque Pilar trái o Esteves nessa pensão barata. Depois de jogar o cigarro no cinzeiro, aquela imagem dela entrando naquele lugar imundo ainda apertava a minha cabeça. Vociferei:

– Mas por quê? Por quê?

– Talvez por tédio –, arrisco um palpite.

Recordemos: durante anos Pilar amou enlevadamente aquele homem com lesmas na língua e, há vinte dias, casou com o Esteves. Amou aquele homem porque seus grossos bigodes eram negros, e ama hoje o proprietário da Tabacaria porque ele é ocioso, amável e não possui lesmas na língua.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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