‘Fico no vermelho, mas não abro mão de hotel 5 estrelas’

Quem não gosta de sair de casa só viaja se for para um lugar tão bom que pareça melhor do que o próprio lar

Quando eu era criança, sempre que um parente morria, minha mãe começava a explicar sobre complicações nos rins ou no coração, mas parava no meio e concluía: “Morreu porque era pobre. Se tivesse plano de saúde bom, estava vivo”. Cresci com a missão existencial de ser rica. Não era questão de ser exigente com a vida, era questão de continuar viva.

Como cheguei aos 40 sem realizar meu maior propósito, decidi fingir ser milionária. Fico no vermelho, mas não abro mão de duas coisas: hotel e hospital 5 estrelas.

Com o primeiro salário bom que ganhei, contratei um convênio com Einstein, Sírio, Fleury. Perguntei ao corretor se um helicóptero me buscaria caso eu passasse mal em alguma praia isolada e sem luz. Jamais iria a um lugar desses, mas queria saber se, caso fosse, seria socorrida. Ele me olhou tentando entender que língua era aquela. Só um bom neurótico me compreende.

Fico feliz quando chego ao Einstein. Tenho a fantasia de que lá estou protegida de tudo. Se um dia o Brasil entrar na maior guerra civil de todos os tempos (talvez amanhã), eu vou na hora para lá e peço internação.

Tenho vontade de rodar de braços abertos cantarolando, sempre que me perco pelos corredores espaçosos e mal sinalizados. Pensa num hotel 5 estrelas que ainda te serve morfina no quarto (se você precisar, claro).

Quando minha filha nasceu e a colocaram em meus braços, fiquei mais instigada com a pulseirinha high-tech que ela usava do que com o fato de ter me tornado mãe. Pensa numa vida sendo espetada em laboratório merda, de repente você chega a um Fleury. Tenho vontade de pedir champanhe enquanto tiro sangue. Sonho de paulistano classe média (eu) é poder dizer que foi ao Einstein em vez de dizer que ficou doente.

Mas foquemos minha obsessão com hotéis 5 estrelas. Meus caros, nunca gostei de viajar. Tenho horror a sair de casa. Foram anos de tratamento para amenizar minhas crises de pânico. Namorados me largavam porque eu tinha aerofobia e eles queriam ir para o mundo. Comprei colchão Tempur e edredom com plumas da Trousseau justamente para celebrar o fato de que viajar não é dado a todos, mas seria feliz e viveria com conforto em minha bolha até o fim dos tempos (apesar de que, com o Einstein, não morrerei tão cedo, se é que morrerei).

Isso durou até o dia em que viajei a trabalho e me deram uma passagem executiva. Minha vida mudou. Na ocasião, entendi que não tinha fobia de avião ou de sair de casa. Tinha era pavor de sofrer, de viajar quase no colo de um senhor desconhecido.

Certa feita, tive um acesso de choro em um Ibis de Santos e fiquei horas com meu psiquiatra na linha falando das minhas dificuldades em sair do ninho, deixar minha zona de conforto (literalmente) etc. Não, mil vezes não. Qualquer pessoa normal chora no Ibis de Santos. Eu era de uma sanidade estrondosa.

Vai ver se eu derramei uma lágrima no Fasano de Angra. Adivinha se fiquei angustiada no Martinhal de Lisboa. Pergunta se tive crise no Soho de Nova York. Hotel bom é de uma alegria, meus amigos, de contagiar até o meu passado na fila do Delboni.

Quem não gosta de sair do aconchego domiciliar só topa se for para um lugar tão bom, mas tão bom, que lhe pareça melhor do que o próprio lar. Tão incrível que valha toda a neurose a ser pensada, anotada e sentida. E assim, graças ao luxo, hoje me curei e viajo. Não o bastante, dado que não sou rica (só vou para lugar de rico, apesar de não gostar de ricos, porém, gosto do que eles gostam), mas sempre que posso (uma vez por ano?).

Meu marido me chama de luxenta e diz que não temos dinheiro para isso, que é ridículo, que tenho problemas. Porém, ele se acostumou ao que é bom, e agora reclama se o hotel não serve fatias bem fininhas de manga no café da manhã. Cruza as pernas, chateado, e diz que não se fazem mais hotéis como antigamente. Na loucura deliciosa de poucos e inesquecíveis dias, a gente fica achando que é tão rico que tem até passado de rico.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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