Avisos não tão fúnebres

No fim, nem tudo é acidente vascular, assassinato, atropelamento. Nas metrópoles, atulhadas de involuntários para a ceifa compulsória, tudo pode acontecer – geralmente mal descrito. A convenção dos obituaristas é que perpetua o formalismo lapidar. Daí a monotonia dos derradeiros classificados, os necrológios. Não custa desdenhar da rotina.

Ontem, aos 78 anos, caiu definitivamente em si, de imensurável altura, o sr. Fulano de Tal. Para um filósofo que há tempos procurava vaga no Infinito, a UTI não passou de uma especulação etérea. Deixa órfãos do seu olhar absorvente centenas de livros e alguns manuscritos, que teimavam em ser inacabados por ele. Metafísico ao extremo, angustiava-se com a falta de cuidados do inexistente jardim na frente do seu edifício.

Fulano de Tal, 54 anos, agrônomo, conseguiu, afinal, concluir a doação integral do seu organismo para fins de adubo natural em diminuta gleba do Jardim da Paz. Amante da natureza, adversário do reflorestamento desenfreado, vai agora envolver-se com uma causa menor, para a qual está devidamente preparado: a expansão das raízes gramíneas ao seu redor.

Nesta sexta-feira, contrariando a sua constante inspiração, que alcançara 80 anos, o poeta Fulano de Tal parou de inspirar. De agora em diante, nem sonetos nem emendas, que mantinham dois jornalistas em exercícios de generosidade crítica. Como a temática obsessiva da sua poesia era a Eternidade, supõe-se a continuidade da sua produção, em outros níveis de apreciação.

Cerrou os cílios postiços para sempre o sr. Fulano de Tal, vulgo Beltrana de Tal, com supostos 39 anos. Figura de proa de carros alegóricos, destaque na luta pela igualdade de direitos, Fulano desfilou soberanamente pela vida, onde contagiava a todos por seu genuíno entusiasmo, e onde acabou contagiado pelo vírus mais anti-social que existe. Em sua homenagem, vários arco-íris se arquearão na paisagem.

Tão discreto quanto viveu, o sr. Fulano de Tal interrompeu por vontade própria o seu metabolismo basal na madrugada passada. Inerte de profissão e calmo de ideologia, apático social e um covarde familiar, fez do sono sua transição. Deixa 4 filhos que o abandonaram primeiro. Aos 68 anos, apascentava vários pares de pantufa na varanda. Sua maior paixão era folhear álbuns de recortes das áreas em branco de revistas. Enquanto permaneceu no IML à espera de liberação, seu corpo teve 29 momentos de rigor mortes. Foi sua última tarde trepidante.

Etc.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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