Claustrophobia

Depois de nove meses num cubículo apertado chamado ventre materno, é de admirar que não nasçamos todos claustrofóbicos. Não há como saber: aquele berreiro dos nascituros ainda não foi de todo decifrado. Para alguém que ainda não sabe rir, pode muito bem ser a a válvula de escape do alívio. Vá saber.

Ou, talvez, sei lá, a claustrofobia que alguém venha a ter seja, justamente, uma possível e atrasada resposta emocional ao seu traumático confinamento intrauterino, aquele quitinete de água e sangue e sem janelas.

Entre o vir ao mundo e o sair do mundo, muitos medos vão rolar. E ao entrar na nossa mente (se é que não são atávicos, eternos inquilinos do crânio) parece que a maioria dos medos adora o refúgio. E mesmo adorando a pensão mental, os medos costumam sair para os diários testes-drive de coragem: ir trabalhar, arrumar companhia, abastecer a despensa, enfrentar assaltos e pandemias, levar o cachorro pra cagar na grama dos outros etc e tal.

Embora seu lema tenha sido criado por Guimarães Rosa (“Viver é muito perigoso.”), os medos vivem a fim de experiências. A exceção é o medo claustrofóbico. Enquanto medos mais comuns imaginam desafios, a imaginação descomunal da claustrofobia imagina terrores. Eu é que não vou tirar a razão dela.

Acontece que depois de décadas livre da barriga da mãe, o ser humano se condicionou à soltura. Não quer saber de elevadores lotados (muito menos de repente parados no escuro entre dois andares), de armários, cápsulas espaciais, minas profundas, submarinos ou escafandros, tumbas egípcias, solitárias de prisões, claustros em mosteiros e conventos, porta-malas ou conjugados de 8m x 2,5m.

A claustrofobia, que circula numa boa por saguões e salões, encantada com altos pés direito e largos horizontes, sabe que nessa vida o seu hospedeiro pode escolher por onde andar e não se meter nas armadilhas das pequenas dimensões. Mas ela sabe também que não existe controle na outra vida. Isso todo claustrofóbico sabe, porque o genialmente mórbido Edgar Allan Poe soube transpor para a literatura o horror da captalepsia. No conto Enterro Prematuro, Poe descreve o indescritível, e se o leitor padece do pior dos medos, convém nem procurar o livro Contos de Terror, Mistério e de Morte. (Lido aos 14 anos, relido várias vezes.)

Acontece que a paranoia, parente próxima da claustrofobia e tão medrosa quanto ela, tem fixação pelo assunto e fica catando pistas no mundo real para justificar seus calafrios. Aliás, o principal argumento da paranoia são os erros médicos. Depois de afirmar que frequentemente acontecem erros médicos em diagnósticos, em tratamentos, em cirurgias, em trocas de pacientes, ela pergunta: por que não haveria também erros médicos nos atestados de óbitos?

O horror não está em perguntar: está nas probabilidades. Se há milhões e milhões que morrem diariamente, quantos desses não são vítimas de enganos, falhas, negligências ou despreparo? Em abril, noticiou o argentino Clarín, uma mulher estava no velório da mãe ( 84 anos, morta por covid) num crematório em Buenos Aires quando percebeu movimento na máscara da mãe no caixão. Foram conferir e a senhora ainda estava viva. Depois do susto brutal veio realmente a falecer, quatro dias depois.

A mais portátil claustrofobia moderna ocorre nos tubos de tomografia e ressonância magnética. A maioria dos pacientes entra rindo e sai cantando (se sua condição clínica assim permite). Nós, portadores da claustrofobia adquirida na 3ª idade, só podemos obter esses exames da mais alta tecnologia abaixo da mais baixa covardia: sob sedação. Nossa minoria entra desacordada e sai dormindo do pavoroso tubo.

A civilização sabe que por séculos e séculos os ritos religiosos prescreveram e continuam a prescrever velórios de 24h (e a lei assina embaixo). Assim, gerações e gerações foram sossegadas quanto à última viagem de seus entes queridos. Mas a desalmada correria dos nossos tempos, que quase não tem civilidade com os vivos, por que teria a mínima civilidade com os mortos?

Acho pouco 24h de espera. Plis, me garantam 36 ou 48h, e nunca mais volto a tocar no assunto.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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